Como consequência dessa extraordinária “descoberta”, os meios de comunicação e muita gente séria (inclusive de dentro da Igreja) começam novamente a debater sobre a obrigatoriedade do celibato sacerdotal. E novamente começamos a escutar as afirmações de sempre: «o Novo Testamento fala certamente do celibato e do casamento, mas nunca como um mandamento, somente como conselho; de modo que seria lógico que os padres pudessem também ter o direito de escolher entre o celibato ou não»; «Se o celibato fosse opcional, certamente haveria mais vocações sacerdotais na Igreja, e essa se apresentaria como mais moderna e adequada aos tempos atuais»; «o celibato não é bíblico e nem é necessário; na verdade é uma invenção posterior da Igreja, surgida muitos anos depois de Cristo; se o mesmo São Pedro, o primeiro dos Apóstolos, foi casado, por que os padres não podem se casar? Parece que não há nada que impeça a mudança dessa norma meramente eclesiástica»; «No Oriente, os sacerdotes são casados, tanto os ortodoxos quanto os católicos de rito oriental. Portanto o celibato não é necessário para o sacerdócio»; «o celibato não é um dogma, mas apenas uma questão disciplinar e por isso pode ser mudada pela autoridade da Igreja».
Essas afirmações são tão repetidas e, ao mesmo tempo, rejeitadas pela Igreja que podemos desconfiar que essas não são mais do que grandes superficialidades. Mas como responder a essas questões? Quais seriam as razões do celibato? Possui origem bíblica? Poderia essa disciplina algum dia mudar? Vamos afrontar aqui essas questões.
1. O ensinamento bíblico:
A primeira coisa a ser dita é que não há dúvidas que Jesus Cristo falou explicitamente do celibato em sua pregação e Ele mesmo viveu desse modo. Os Evangelhos dizem que ele foi chamado de «comilão e beberrão», de «amigo dos publicanos e dos pecadores», mas jamais foi chamado de luxurioso, de mulherengo. Numa ocasião os seus discípulos se surpreendem ao vê-lo conversando a sós, perto de um poço, com uma mulher Samaritana. Isso demonstra que seus discípulos jamais tiveram a menor suspeita da castidade absoluta de Jesus. De fato, não há nenhum texto bíblico que sugira que Jesus não fosse celibatário e nenhum texto “apócrifo”, nenhum escrito extra bíblico dos primeiros séculos, que o afirme ou sugira. A descoberta recente ganhou a atenção mediática exatamente porque é o primeiro texto relativamente antigo (sec. IV d. C.) que parece sugerir essa possibilidade.
Jesus falou claramente sobre o celibato, justamente depois de fazer um belíssimo discurso sobre a santidade e a indissolubilidade do Matrimônio (Mt 19): «porque há eunucos que o são desde o ventre de suas mães, há eunucos tornados tais pelas mãos dos homens e há eunucos que a si mesmos se fizeram eunucos por amor do Reino dos céus. Quem puder compreender, compreenda».
Naquela mesma ocasião, um jovem rico se apresentou a Jesus querendo-lhe seguir. O Senhor então lhe apresentou as exigências necessárias para fazê-lo e aquele jovem, que tinha muitos bens e que não queria deixar nada, o abandonou triste. Imediatamente depois Pedro, comparando sua vida com a daquele jovem, perguntou a Jesus: «Eis que nós deixamos tudo e te seguimos». E ele então respondeu: «… todo aquele que por minha causa deixar irmãos, irmãs, pai, mãe, mulher, filhos, terras ou casa receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna».
Jesus mostra aqui aos seus Apóstolos o que significa deixar «tudo» para segui-lo: inclui o deixar mulher e filhos. Então aqui surge uma pergunta: então algum dos Apóstolos era casado? O texto parece indicar que sim. De fato, São Pedro pelo menos era casado, pois os Evangelhos contam que Jesus curou a sua sogra (Mt. 8, 14-15). Entretanto, é interessante notar que aquela senhora, uma vez curada da sua grave febre, imediatamente se levanta e começa a servir ao Senhor e aos doze Apóstolos. O texto bíblico não fala nada sobre a esposa de Pedro (nem aqui, nem em lugar algum do N.T.). Não foi essa que se colocou ao serviço de Jesus, coisa que seria mais lógico do que uma mulher anciã e convalescente. Não há dúvidas, pois, de que a Bíblia sugere que Pedro fosse viúvo naquela ocasião.
De qualquer modo, o celibato na vida da Igreja até o Concílio de Trento (séc. XVI) foi entendido sempre em dois significados, presente no Decreto de Graciano, uma síntese extraordinária da legislação canônica feita no ano 1.140: a continentia clericorum se refere ao dever dos ministros ordenados de não se casar ou de não usar dos direitos matrimoniais de um casamento previamente contraído (in non contrahendo matrimonio et in non utendo contracto). Isso quer dizer que, efetivamente, no primeiro milênio da Igreja existiam padres casados, como as mesmas Sagradas Escrituras nos falam (cfr. 1 Tim. e Tit). Mas a partir do momento da Ordenação, do momento que o «eu» do sacerdote se une ao «eu» de Cristo [i], os padres deveriam, a exemplo de Jesus e dos Apóstolos, deixar tudo para segui-lo, o que implicava a renúncia à vida matrimonial. Para seguir ao Senhor na vida sacerdotal, é necessário deixar tudo: «casa, pais, irmãos, mulher, filhos, pelo reino de Deus».
O motivo pelo qual, nos primeiros séculos, houve padres casados foi porque o matrimônio não era como é hoje, um consenso livre entre duas pessoas, mas se fundava num contrato jurídico entre as famílias e o Cristianismo surgiu dentro do Império Romano. De modo que no Cristianismo primitivo era comum que houvesse pessoas casadas, devido a uma obrigação jurídica, e celibatárias, «por causa de Cristo e do Reino dos Céus». E isso não era uma obrigação exclusiva para os padres, mas sim uma escolha livre dos cristãos, de homens e mulheres. De modo que na Igreja antiga os padres provinham de três grupos diversos: dos celibatários que não eram legalmente casados, dos monges, e dos homens casados legalmente, os quais, uma vez ordenados diáconos, passavam a viver a continência absoluta.
E há outras figuras celibatárias na Bíblia? Certamente sim. No Antigo Testamento os sacerdotes deviam viver a continência no período em que eles prestavam serviço litúrgico no Templo. O sacerdócio em Israel era ligado à tribo de Levi, que devia permanecer ao longo da História. Por isso, cada sacerdote prestava o seu serviço num determinado período de tempo. Em Israel o sacerdócio era hereditário e não o fruto de uma vocação e escolha pessoal. De modo que para eles havia a obrigação do celibato nos períodos em que serviam ao templo e no resto do tempo viviam seu matrimônio normalmente. Além disso, no A.T. há a figura de Jeremias, sacerdote que pretendia se casar com Judite, mas Deus lhe proibiu explicitamente como um sinal profético ao povo de Israel (Jer. 16).
No Novo Testamento temos a figura de João Batista, o precursor do Senhor que era, sem dúvidas, celibatário. Além dele, José e Maria eram casados e não tiveram jamais uma relação sexual, pois é uma verdade de fé que Maria foi virgem antes, durante e depois do parto e José foi o protetor da virgindade de Maria. Mas a origem mesma do celibato na vida eclesiástica é a vida de Jesus Cristo, ao qual se associaram os seus Apóstolos. Não há nenhum texto bíblico que mencione as esposas dos Apóstolos, nem algum sinal da existência dessas na tradição extra bíblica, nem escrita, nem monumental. Os textos «apócrifos» da Antiguidade não falam nunca das esposas de Jesus Cristo e dos seus Apóstolos e não há nenhuma tradição que diga onde estejam enterradas essas mulheres, por exemplo. Certamente, se Jesus e os Apóstolos tivessem sido casados, isso não teria sido pecado algum, pois o casamento foi elevado por Jesus Cristo ao nível de Sacramento, de sinal sagrado que simboliza a Aliança eterna e fiel entre Deus e a humanidade. Se não há nenhum sinal na História das esposas de Jesus e dos Apóstolos é porque essas jamais existiram.
São Paulo, que não pertencia ao grupo dos Doze Apóstolos, mas que foi chamado posteriormente por Jesus a ser um «Apóstolo de Cristo», fala também explicitamente do celibato, dizendo que não é um mandamento do Senhor, mas ele queria que muitos cristãos fossem como ele. O fato de que ele fosse celibatário, «Apóstolo» e um perfeito imitador de Cristo nos mostra que o celibato era condição necessária para se abraçar o sacerdócio de Cristo. De fato, o sacerdote diz todos os dias «Isso é o meu corpo entregue por vós». Quem pensa seriamente nessas palavras compreende sem dificuldade alguma a beleza e a exigência de se viver o celibato, entregando-se realmente ao próximo como Cristo [ii].
Há ainda dois textos bíblicos utilizados como argumento pelos que pretendem a abolição do celibato na Igreja. São 1 Tim 3, 1-5 e Tit. 1, 8-9, nos quais São Paulo enumera as qualidades do bispo.
1 Tim 3, 1-5: «Eis uma coisa certa: quem aspira ao episcopado, saiba que está desejando uma função sublime. Porque o bispo tem o dever de ser irrepreensível, casado uma só vez, sóbrio, prudente, regrado no seu proceder, hospitaleiro, capaz de ensinar. Não deve ser dado a bebidas, nem violento, mas condescendente, pacífico, desinteressado; deve saber governar bem a sua casa, educar os seus filhos na obediência e na castidade. Pois quem não sabe governar a sua própria casa, como terá cuidado da Igreja de Deus?»
Tito 1, 8- «o bispo seja irrepreensível, como administrador que é posto por Deus. Não arrogante, nem colérico, nem intemperante, nem violento, nem cobiçoso. Ao contrário, seja hospitaleiro, amigo do bem, prudente, justo, piedoso, continente (encratés), firmemente apegado à doutrina da fé tal como foi ensinada, para poder exortar segundo a sã doutrina e rebater os que a contradizem».
No primeiro deles se diz que o bispo dever ser casado uma só vez (unius uxoris vir) e no segundo diz que o bispo de ver ser continente (encratés), palavra usada na Igreja antiga e medieval para se descrever o celibato sacerdotal. Como conciliar os dois textos? Certamente, assim como a Tradição da Igreja o fez: o bispo que fosse casado antes da sua Ordenação deveria se abster das relações sexuais com a sua esposa ao ser admitido às sagradas Ordens. E isso está de acordo com os Evangelhos, pois quem quer seguir de perto o Senhor deve deixar tudo, inclusive «mulher e filhos», por causa dele e do Reino dos Céus. Assim foram interpretados esses textos pelos cristãos desde o primeiro século, tanto no Oriente como no Ocidente. A documentação sobre isso é abundante.
2. O celibato na Tradição da Igreja
Antes de tudo é preciso dizer que quem pensa que o celibato é apenas uma lei disciplinar da Igreja, que poderia ser mudada a qualquer momento, assume, talvez acriticamente, uma visão positivista do Direito, como se as leis da Igreja fossem arbitrárias, provenientes apenas da vontade do legislador ou do consenso humano e fossem totalmente desvinculadas das verdades da fé (dogmas). Na verdade, a Igreja jamais teve uma visão positivista do Direito, de modo que a lei foi sempre entendida como «uma ordenação racional para o bem comum promulgada por quem dirige a comunidade» (Santo Tomás de Aquino, S.Th. I-II, 90,4). As leis da Igreja não podem jamais ser arbitrárias, mas são sempre racionais e tem como fonte a Revelação. Recentemente o importante filósofo do Direito, Hans Kelsen bem demonstrou que o Direito (ius) é diverso das leis (lex). O Direito é toda norma obrigatória, transmitida inicialmente como tradição oral e como costume e, posteriormente, essas normas são colocadas por escrito (lex). Essa descrição é correta, válida tanto para as primeiras leis do Direito Romano como para aquelas eclesiásticas, inclusive no que se refere ao celibato apostólico. Esse foi antes de tudo vivido por Jesus Cristo, pelos Apóstolos (seja na forma de continência perfeita, seja na abstinência das relações sexuais depois da Ordenação) e seus sucessores: bispos, presbíteros e diáconos.
A primeira lei escrita sobre o celibato provém do Concílio de Elvira (Córdoba – Espanha), no ano 300. Antes dessa época há poucos documentos jurídicos da Igreja, devido ao período das perseguições. No ano 300 a Igreja contava com uma relativa paz na Espanha, o que possibilitou a realização desse Concílio.
No Cânon 33, sob o título «sobre os bispos e ministros (do altar), que devem ser continentes com suas esposas», lemos: «Se está de acordo sobre a proibição total, válida para bispos, sacerdotes e diáconos, ou seja, para todos os clérigos dedicados ao serviço do altar, que devem se abster de suas esposas e não gerar filhos; quem fizer isso deve ser excluído do estado clerical». O cânon 27 insistia também na proibição de que habitassem com os bispos e outros eclesiásticos, outras mulheres não pertencentes à sua família. Só poderiam levar para junto de si, uma irmã ou uma filha consagrada virgem, mas de nenhum modo uma estranha.
Essa lei não era uma novidade na vida da Igreja, pois seria algo injusto e irracional. Uma lei desse tipo criada ex ninhil seria uma grave injustiça e criaria justificáveis reações. Mas as disposições daquele Concílio se referem a uma disciplina recebida de Cristo, dos Apóstolos, de seus sucessores e que era algo vivido pelos clérigos. De modo que essa lei era uma reação contra a infidelidade de alguns que naquela época desrespeitavam a prática tradicional. Por isso o Concílio pôde estabelecer uma grave e justa sanção a quem desobedecesse àquela lei: o afastamento do estado clerical. O Papa Pio XI, na sua Encíclica sobre o sacerdócio, afirmou que essa primeira lei escrita supunha uma práxis precedente, de origem apostólica.
Posteriormente encontramos duas cartas do Papa Sirício, que respondia a algumas questões apresentadas ao seu predecessor. Na carta Directa, do ano 385, o Papa disse que os sacerdotes e diáconos que, depois da Ordenação, geram filhos, atuam contrariamente a uma lei irrenunciável, que obriga aos clérigos maiores desde o início da Igreja. A apelação ao fato de que no Antigo Testamento, os sacerdotes e levitas podiam ter relações sexuais fora do tempo do seu serviço no Templo foi refutada pelo Novo Testamento, no qual os clérigos devem prestar culto sagrado todos os dias; por isso, a partir do dia da sua Ordenação, esses devem viver a continência absoluta. E noutra carta do ano em 386 lemos: «os sacerdotes e levitas não devem ter relações sexuais com suas esposas, porque devem estar ocupados diariamente com o seu ministério sacerdotal».
Depois temos a disposição do importante Concílio Africano do ano 390, que será posteriormente incluída no Código dos Cânones das Igrejas Africanas. Sob o título: «que a castidade dos sacerdotes e levitas deve ser protegida», o texto afirma: «O bispo Epigônio disse: “de acordo com aquilo que o anterior Concílio afirmou sobre a continência e sobre a castidade, os três graus que estão ligados pela Ordenação a uma determinada obrigação de castidade, ou seja, bispos, sacerdotes e diáconos – devem ser instruídos de uma forma mais completa sobre o seu cumprimento”. O bispo Genetlio continuou: “como já mencionado, convém que os sagrados bispos, os sacerdotes de Deus e os levitas, ou seja, aqueles que servem nos divinos sacramentos, sejam continentes por completo, para que possam obter sem dificuldades o que pedem ao Senhor; para que também protejamos o que os Apóstolos ensinaram e é conservado desde antigamente”. A isso os bispos responderam unanimemente: “estamos todos de acordo que bispos, sacerdotes e diáconos, guardiães da castidade, se abstenham também de suas esposas, a fim de que em tudo e por parte de todos os que sirvam ao altar seja conservada a castidade”».
Um dos principais motivos dados pela Igreja antiga do celibato é que esse torna eficazes as orações dos sacerdotes. Eles se baseiam no texto bíblico de São Paulo, o qual escrevia aos esposos cristãos: «Não vos recuseis um ao outro, a não ser de comum acordo, por algum tempo, para vos aplicardes à oração; e depois retornai novamente um para o outro, para que não vos tente Satanás por vossa incontinência» (cfr. 1 Cor, 7, 3-6.). São Paulo diz que os casados só podem abster-se das relações sexuais por certo tempo, para se dedicarem à oração e assim essas seriam escutadas. Os Padres da Igreja e os primeiros Papas argumentavam dizendo que os sacerdotes devem ser com mais motivos castos, para se dedicarem à oração em favor do povo de Deus. Desse modo, suas orações seriam mais eficazes; os padres que se esforçam por manter intacto o próprio celibato e procuram rezar com perseverança pelo povo de Deus podem comprovar a verdade desses ensinamentos diariamente.
Naquele mesmo texto, São Paulo recomendava a virgindade aos outros cristãos, sem dizer que o casamento é pecaminoso. «Pois quereria que todos fossem como eu; mas cada um tem de Deus um dom particular: uns este, outros aquele. Aos solteiros e às viúvas, digo que lhes é bom se permanecerem assim, como eu. Mas, se não podem guardar a continência, casem-se. É melhor casar do que abrasar-se» (I Cor. 7, 8-9). Não há dúvidas de que o celibato possui fundamentos bíblicos e a disciplina eclesiástica se baseia na vida mesma de Cristo e dos seus Apóstolos, dando origem assim ao que a tradição da Igreja chama de apostolica vivendi forma [iii].
3. A diversa disciplina nas Igrejas orientais.
É frequente a afirmação de que na Igreja oriental o celibato é opcional e os sacerdotes celebram validamente os Sacramentos, de modo que a disciplina celibatária da Igreja latina poderia ser mudada em qualquer momento. Mas qual é a razão da diversa disciplina oriental?
A Igreja Ortodoxa antiga era muito concentrada em questões teológicas, talvez mais do que no Ocidente; porém as questões disciplinares eram discutidas em cada região. De modo que na Igreja oriental não havia a mesma firmeza disciplinar que havia no Ocidente, devido a gradual separação disciplinar do Ocidente, a sua progressiva fragmentação e a influência imperial. Por isso, os costumes e as leis disciplinares foram progressivamente mudando naquela época.
Sendo assim, o Código Teodosiano (ano 434) dizia que a continência pode ser guardada, mas permitia à mulher morar com o marido, também depois da Ordenação; a legislação do Imperador Justiniano I em matéria eclesiástica, tanto no Código (ano 534) quanto nas Novellae (535-536) muda, em parte, a disciplina: mantém a proibição de se admitir na Ordem sagrada aquele que se tivesse sido casado mais de uma vez, assim como a de casar-se depois da Ordenação, e isto para todos os três graus da Ordem; porém, se permitia aos sacerdotes, diáconos e subdiáconos a coabitação com a esposa com o fim de que pudessem continuar usando do matrimônio, sempre que tivesse sido contraído uma só vez e com uma virgem.
Mas a mudança mais radical no Oriente, nessa matéria, ocorreu no Concílio Trullano II, convocado pelo imperador Justiniano II, no Outono de 690. Nele se tentou reunir toda a legislação disciplinar da Igreja bizantina e se buscou fazer necessárias atualizações. O resultado desse trabalho foi a promulgação de 102 cânones, que foram acrescentados mais tarde ao antigo Syntagma adauctum, transformando-se no último Código da Igreja Bizantina. O dito Concílio foi um evento particular da Igreja Bizantina, convocado e frequentado somente por seus bispos e mantido pela sua autoridade, que se apoiava de modo decisivo na autoridade do imperador. A Igreja Ocidental não enviou delegados e nunca reconheceu este Concílio como ecumênico, apesar das repetidas tentativas e pressões, especialmente por parte do imperador. O Papa da época era Sérgio (687-701), procedia da Síria e negou o reconhecimento daquele evento. Mais adiante, o Papa João VIII (872-882) só reconheceu as disposições que não eram contrárias à prática de Roma em vigor até aquele momento.
A disciplina sobre o celibato decidida então é válida ainda hoje nas Igrejas Orientais e diz que «todos os que depois do Batismo tenham contraído um segundo matrimônio ou tenha vivido em concubinato, bem como aqueles que se tinham casado com uma viúva, uma divorciada, uma prostituta, uma escrava ou uma atriz, não poderiam tornar-se nem bispos, nem sacerdotes, nem diáconos» (can. 3); «que aos sacerdotes e diáconos não estão autorizados a se casar após a Ordenação» (can. 6); «os bispos não podem, após a Ordenação, coabitar com sua esposa e, por conseguinte, não podem mais usar do matrimônio» (can. 12); «… os sacerdotes, diáconos e subdiáconos da Igreja oriental, em virtude de antigas prescrições apostólicas, podem conviver com suas esposas e usar dos direitos do casamento para a perfeição e ordem correta, exceto nos tempos em que prestam o serviço no altar e celebram os sagrados mistérios, devendo ser continentes durante este tempo» (can. 13).
As decisões aqui são bem interessantes ao nosso tema. Podemos ver que a Igreja oriental conserva para os bispos a mesma severa disciplina sobre a continência que se praticou sempre em toda a Igreja. Não há dúvidas de que essa lei pode ser considerada como um resíduo na legislação trullana da tradição antiga, apostólica.
Por outro lado, não se compreende naquelas disposições alguns pontos:
a) Porque só se admite um único Matrimônio para os padres casados; de fato, se esses ficam viúvos, não podem se casar com outra mulher; ora, se os outros padres podem se casar livremente, por que os viúvos não o podem? Quais seriam as justificativas teológicas dessa disposição?
b) A proibição das relações sexuais dos sacerdotes com suas esposas nos dias em que esses celebravam a Divina Liturgia (Missa), adotando assim uma concepção de sacerdócio semelhante a do A.T. No início, o culto litúrgico na Igreja oriental era feito somente nos domingos e em algum outro dia da semana. Com o passar do tempo o culto passou a ser diário e era de se esperar que a disciplina do celibato passasse a ser obrigatória sempre. Porém, ocorreu exatamente o contrário.
No Oriente algumas Igrejas particulares que estavam unidas à Bizantina se uniram posteriormente a Roma e lhes foi concedido poder continuar a sua tradição celibatária diferente. Certamente o retorno desses à comunhão com a Igreja latina foi uma grande alegria, porém, como disse o cardeal A. Stickler, o reconhecimento da diversidade de disciplina pode ser considerado como um nobre respeito, mas não como a aprovação oficial da mudança da disciplina apostólica da continência absoluta.
Atualmente sabe-se que nas Igrejas orientais (assim como nas provenientes da Reforma), onde não há mais a obrigação do celibato, há uma grande crise de vocações. E essa crise de vocações lhes afeta inclusive na hora de se designar um bispo para uma nova diocese, visto que os bispos devem ser celibatários e que os sacerdotes deles, na maioria dos casos, são casados [iv]. Na Igreja Católica isso não ocorre. Costuma-se dizer que a vocação ao episcopado é a única que não encontra crises na Igreja latina. Ao mesmo tempo, percebe-se nos últimos anos um aumento constante no número de Ordenações e de vocações sacerdotais, a nível global, apesar das dificuldades. No mundo, em 2009 eram 410.593 sacerdotes, enquanto que em 1999 eram 405.000[v]. No Brasil o número de padres passou de 16.772 no ano 2.000 para 22.119 em 2.010 [vi]. Nos Sínodos de Bispos em Roma, os bispos das Igrejas orientais sempre afirmam a beleza do dom do celibato, conservado na Igreja Católica e, ao mesmo tempo, falam da crise de vocações que essas Igrejas sofrem atualmente.
Outros dados interessantes: recentemente uma pesquisa de uma importante Revista, a Forbes, mostrou que o sacerdócio é a “profissão” na qual há uma maior taxa de felicidade entre os que o abraçam [vii]. Por outro lado, sabe-se que, infelizmente, nos nossos dias mais de 40% dos matrimônios se rompem, enquanto que por volta de 2% dos padres abandonam a vida sacerdotal [viii]. É evidente que a solução para a crise de vocações para o sacerdócio não é o matrimônio. Pois como bem notou o então cardeal J. Ratzinger o que se percebe hoje não é somente a incapacidade de se viver o celibato, mas sim a de se fazer qualquer tipo de escolha definitiva e de ser coerente com a mesma. Hoje pode parecer que é impossível a fidelidade no matrimônio, assim como ao celibato. E há quem proponha que o melhor modo para que haja mais sacerdotes fiéis ao seu ministério (algo que parece ser impossível) e dar-lhes o direito de viver algo que lhes parece ainda mais impossível: o matrimônio. Não há dúvidas, pois, de que se fossem permitidos na Igreja Católica padres casados, o próximo problema da Igreja seria o que fazer com os padres divorciados, problema bem presente nas comunidades protestantes tradicionais [ix].
Pode, pois, a disciplina da Igreja mudar? Por tudo o que vimos, podemos concluir que é bem mais possível que se mude a disciplina nas Igrejas orientais do que na Igreja Católica de rito latino, que mantém intacta a tradição recebida por Jesus Cristo e pelos Apóstolos. Mas talvez haja ainda quem insista e diga: «tudo bem, o celibato é bíblico e esteve sempre presente na vida da Igreja. Mas não devia ser esse opcional, tal como diz São Paulo?» A resposta que podemos dar a essa questão é uma só: o celibato na Igreja Católica sempre foi opcional! Hoje como no passado, ninguém pode ser obrigado a ser ordenado sacerdote, pois essa Ordenação seria inválida. Quem se sente chamado e se decide a responder positivamente a Cristo, aceita tudo o que essa decisão implica: inclusive o celibato. Ele é a pérola preciosa pela qual vale a pena trocar todas as demais. Além disso, para alguém ser ordenado sacerdote precisa ter ao menos 25 anos e ter passado no mínimo 5 anos de preparação num Seminário para discernir se Deus lhe chamou para essa missão em favor do povo de Deus. Um seminarista sabe, desde o primeiro dia seu no Seminário, que sua vocação implica a luta por viver o celibato, que é antes um dom de Deus. Quem escolhe de seguir a Cristo no sacerdócio, escolhe de lutar por viver como Ele viveu, dando sua vida pelos outros. Como bem disse o Beato João Paulo II na sua última carta aos sacerdotes, «as palavras da instituição da Eucaristia devem ser, para nós, não apenas uma fórmula de consagração, mas uma “fórmula de vida”» [x]. De modo que se Cristo foi o Esposo da Igreja (Ef. 5), se Ele deu a sua vida por Ela, por que não devem fazer o mesmo aqueles que se unem intimamente a Ele e agem in persona Christi?
Padre. Anderson Alves - Bibliografia:
CARD. A. STICKLER, Il celibato ecclesiastico. La sua storia e i suoi fondamenti teologici, Libreria editrice Vaticana, Roma: 1994. A tradução ao português é nossa e está disponível em:
http://www.presbiteros.com.br/site/celibato-eclesiastico-historia-fundamentos-teologicos/
MAX THURIAN, Base teológica do celibato sacerdotal. Disponível em: http://www.presbiteros.com.br/site/base-teologica-do-celibato-sacerdotal/
PAPA PIO XII, Carta Encíclica Sacra Virginitas de 25/03/1954. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_25031954_sacra-virginitas_po.html
PAPA BENTO XVI, Discurso Do Papa Bento XVI aos Cardeais, Arcebispos, Bispos e Prelados Da Cúria Romana para a Apresentação bos Bons Votos de Natal, em 22/12/2006. Disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2006/december/documents/hf_ben_xvi_spe_20061222_curia-romana_po.html
IDEM, Vigília por ocasião do encontro internacional de sacerdotes. Diálogo com os sacerdotes, em 10/06/2010. Disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2010/june/documents/hf_ben-xvi_spe_20100610_concl-anno-sac_po.html
[i] Cfr. Papa Bento XVI, Vigília por ocasião do encontro internacional de sacerdotes. diálogo do papa Bento XVI com os sacerdotes, em 10/06/2010. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2010/june/documents/hf_ben-xvi_spe_20100610_concl-anno-sac_po.html
[ii] Dizia o então teólogo calvinista, M. THURIAN: «Cristo nunca se casou. Sua vida é justificativa da vocação para o celibato. Jesus Cristo questiona as leis da criação e da natureza; questiona a Lei da Antiga Aliança, que buscava restabelecer a ordem na criação e na natureza, perturbada pelo pecado». «O celibato é um desses sinais a nos recordar as exigências absolutas de Cristo, seu retorno libertador, a economia do Reino do Céu, a necessidade de estar vigilante, de romper com o mundo, com a carne, com a luxúria e de, com alegria no coração, aceitar a renúncia às paixões pelo puro amor de Jesus». De modo semelhante, disse um famoso teólogo protestante Karl Barth: «por que surpreender-nos de que entre os seguidores de Jesus, e mais tarde na Igreja primitiva, e mais tarde ainda, havia, ao que parece, homens que achavam razoável praticar essa outra possibilidade (essa segunda vocação conhecida como celibato), homens para quem fazer parte da Igreja e nela viver tomava definitivamente o lugar da união conjugal e da vida de casado: não por hostilidade ao casamento entendido no sentido da Carta aos Efésios 5, 31 – o casamento restaurado em toda a sua dignidade – mas antes por causa dessa reavaliação do casamento e inspirados diretamente no próprio exemplo de Jesus». Cfr. K. BARTH, Die kirchliche Dogmatic, t. III, 6. p. 160. Cfr.: http://www.presbiteros.com.br/site/base-teologica-do-celibato-sacerdotal/
[iii] Cfr. PAPA BENTO XVI, Discurso durante a audiência concedida à Congregação para o Clero em 16/03/2009. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2009/march/documents/hf_ben-xvi_spe_20090316_plenaria-clero_po.html
[iv] O site da Igreja Ortodoxa de Buenos Aires explica muito bem a disciplina celibatária hoje vigente, em substância, a mesma do “Concílio Trullano II” e fala que atualmente são muito os padres “brancos”, ou seja, os que não fizeram os votos monásticos, que optam pelo celibato. Também reconhecem a dificuldade que se tem atualmente de se ordenar bispos ortodoxos. Cfr: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/igreja_ortodoxa/a_igreja_ortodoxa_fe_e_liturgia7.html#5
[v] Os dados estatísticos da Igreja Católica podem ser vistos em: http://www.fides.org/aree/news/newsdet.php?idnews=31416&lan=por
[vi] Para ver os dados recentes da Igreja no Brasil: http://www.news.va/pt/news/ibge-catolicos-ainda-sao-maioria-no-brasil-mas-aum
[vii] A notícia pode ser vista nesse link: http://epocanegocios.globo.com/Revista/Common/0,,EMI284159-16418,00-AS+PROFISSOES+QUE+MAIS+TRAZEM+FELICIDADE+E+TRISTEZA.html
[viii] Essas são as recentes afirmações do atual prefeito da Congregação para o Clero, Dom Mauro Piacenza: http://www.comshalom.org/blog/carmadelio/26410-prefeito-da-congregacao-para-o-clero-reafirma-o-nao-ao-celibato-opcional-e-a-ordenacao-feminina
[ix] Cfr. J. RATZINGER, O sal da terra: o Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro Milênio, Ed. Amago, São Paulo: 1997, pg. 156.
[x] Cfr. JOÃO PAULO II, Carta aos Sacerdotes por Ocasião Da Quinta-Feira Santa de 2005. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/letters/2005/documents/hf_jp-ii_let_20050313_priests-holy-thursday_po.html
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