O Concílio Vaticano II definiu a Liturgia como “obra de Cristo Sacerdote e de seu Corpo que é a Igreja”.
No mesmo texto a obra de Jesus Cristo é referida como a obra da redenção que Cristo realizou especialmente pelo Mistério Pascal de sua Paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa Ascensão.
“Por este Mistério, morrendo ele destruiu nossa morte e ressurgindo restaurou a vida”. À primeira vista, nessas duas sentenças, a expressão “obra de Cristo” parece ter sido usada com dois sentidos diferentes.
“A obra de Cristo” refere-se antes de tudo às ações redentoras, históricas de Jesus, sua Morte e Ressurreição; por outro lado, é a celebração da liturgia que é chamada “obra de Cristo”.
Na verdade, os dois significados estão inseparavelmente unidos: a Morte e a Ressurreição de Cristo, o Mistério Pascal, não são apenas eventos históricos, exteriores. No caso da Ressurreição isto é muito claro. Está unido à história, penetra-a, mas transcende-a de duas formas: não é ação de um homem, mas uma ação de Deus, e assim leva Jesus ressuscitado para além da história, para aquele lugar em que ele está sentado à direita do Pai. Mas também a Cruz não é uma ação meramente humana. O aspecto puramente humano está presente nas pessoas que levaram Jesus para a Cruz.
Para o próprio Jesus, a Cruz não é primariamente uma ação, mas uma paixão, e uma paixão que significa que ele se conformou à Divina Vontade – uma união, o caráter dramático do que nos foi mostrado no Jardim do Getsêmani. Assim, a dimensão passiva de ser entregue à morte é transformada numa dimensão ativa de amor: a morte torna-se o abandono de si ao Pai, pelos homens. Assim, o horizonte se estende, como se faz na Ressurreição, para bem além do aspecto puramente humano e do ter sido pregado à cruz e ter morrido. Este elemento adicional para o mero evento histórico é o que a linguagem da fé chama de “mistério” e que condensou no termo “Mistério Pascal” o núcleo mais profundo do evento redentor. Se podemos dizer, por isto, que o “Mistério Pascal” constitui o núcleo da “obra de Jesus”, então a conexão com a liturgia fica imediatamente clara: é precisamente esta “obra de Jesus” que é o conteúdo real da liturgia. Nela, através da fé e da oração da Igreja, a “obra de Jesus” é continuamente posta em contato com a história, a fim de nela se inserir. Assim, na liturgia, o evento histórico meramente humano é sempre mais transcendido, e torna-se parte da ação divina e humana da Redenção. Nela, Cristo é o verdadeiro sujeito operante: é a obra de Cristo; mas nela ele atrai a história para si, precisamente nesta ação permanente onde tem lugar a nossa salvação.
1. O Sacrifício colocado em questão
Se voltarmos até o Vaticano II, encontramos a seguinte descrição desta relação: “A Liturgia, pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, ‘se opera a obra da nossa Redenção’, contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja”.
Tudo isso tornou-se estranho ao pensamento moderno e, apenas passados 30 anos do Concílio, foi posto em questão mesmo entre liturgistas católicos. Quem hoje em dia ainda fala do “divino Sacrifício Eucarístico”? Discussões sobre a ideia de sacrifício tem se tornado novamente bem vivas, tanto no lado católico como no protestante. Qualquer um percebe que uma ideia que sempre esteve presente, sob várias formas, não só na história da Igreja, mas na história inteira da humanidade, deve ser expressão de algo que bem nos diz respeito. Mas, ao mesmo tempo, as posições do antigo Iluminismo ainda vivem por toda parte: acusações de mágica e paganismo, contrastes entre o culto e o serviço da Palavra, entre o rito e o ethos, a ideia de um Cristianismo que se abstrai do culto e adentra o mundo profano, teólogos católicos que não tem o menor desejo de serem acusados de anti-modernismo. Mesmo se o povo quiser, de uma forma ou de outra, redescobrir o conceito de sacrifício, embaraço e crítica são o resultado final. Assim, Stefan Orth, no vasto panorama de uma bibliografia de obras recentes voltadas para a temática do sacrifício, acreditou que poderia fazer a seguinte afirmação como uma síntese de sua pesquisa: "De fato, vários Católicos hoje ratificam o veredito e as conclusões de Martinho Lutero, que diz que falar de sacrifício é 'o maior e mais terrível horror' e uma 'impiedade detestável': eis por que queremos evitar tudo que remete a sacrifício, incluindo todo o Cânon, e manter somente o que é puro e sagrado”. Orth, então, acrescenta: “Esta máxima foi também seguida na Igreja Católica depois do Vaticano II, pelo menos como tendência, e levou o a se pensar no culto divino sobretudo a partir da Festa da Páscoa nos relatos da Última Ceia”. Recorrendo a uma obra sobre o sacrifício, editada por dois liturgistas católicos modernos, ele então disse, em termos levemente mais moderados, que realmente pareceu que a noção de sacrifício da Missa – ainda mais que a de sacrifício da Cruz – foi, na melhor das opiniões, uma ideia muito aberta a incompreensões.
Certamente não preciso dizer que eu não sou um dos “numerosos católicos” que consideram o maior e mais terrível horror e uma impiedade detestável o falar do sacrifício da Missa. Isso sem falar que o escritor não mencionou meu livro sobre o espírito da liturgia, o qual analisa detalhadamente a ideia do sacrifício. Seu diagnóstico continua a ser apavorante. Ele é verídico? Eu não conheço esses numerosos católicos que consideram uma impiedade detestável entender a Eucaristia como um sacrifício. O segundo diagnóstico, mais discreto, que afirma que o sacrifício da Missa está aberto a incompreensões, é, por outro lado, facilmente verificável. Mesmo se alguém deixar de um lado a primeira afirmação como um exagero de retórica, permanece um problema preocupante, o qual deveríamos enfrentar. Uma parte considerável de liturgistas católicos parece ter praticamente chegado à conclusão de que Lutero, mais do que Trento, é que estava substancialmente correto no debate do séc. XVI; muito se pode perceber a mesma posição nas discussões pós-conciliares sobre o Sacerdócio.
O grande historiador do Concílio de Trento, Hubert Jedin, apontou para isto em 1975, no prefácio ao ultimo volume de sua História do Concílio de Trento: “O leitor atento... ao ler isto não ficará menos consternado que o autor, ao perceber que muitas das coisas – quase tudo, de fato – que perturbaram os homens do passado estão sendo repropostas hoje em dia”. Somente neste contexto de negação efetiva da autoridade de Trento é que se pode entender a violência da luta contra a permissão para a celebração da Missa de acordo com o Missal de 1962, depois da reforma litúrgica. A possibilidade de celebrar assim constitui a mais forte e, por isso (para eles), mais intolerável objeção à opinião daqueles que acreditam que a fé na Eucaristia, formulada por Trento, perdeu seu valor.
Seria fácil reunir provas para sustentar esta afirmação sobre esta posição. Eu deixo de lado a extrema teologia litúrgica de Harald Schützeichel, que se distancia completamente dos dogmas católicos e expõe, por exemplo, a afirmação audaz de que foi apenas na Idade Média que a ideia da Presença Real foi inventada. Um liturgista moderno como David N. Power conta-nos que no decorrer da história, não só a maneira de se expressar uma verdade, mas também o conteúdo expresso pode perder seu significado. Concretamente ele relaciona sua teoria com as afirmações de Trento.
Theodore Schnitker conta-nos que uma liturgia atualizada inclui tanto uma expressão diferente da fé como mudanças teológicas. Além disso, de acordo com ele, há teólogos, pelo menos nos círculos da Igreja Romana e de sua liturgia, que ainda não assimilaram toda a importância das transformações levadas a cabo pela Reforma Litúrgica na área da doutrina da fé. A obra certamente respeitável de R. Meßner sobre a reforma da Missa realizada por Martinho Lutero, e sobre a Eucaristia na Igreja primitiva, que contém várias ideias interessantes, chega, entretanto, à conclusão de que a Igreja primitiva foi melhor compreendida por Lutero do que pelo Concílio de Trento.
A natureza séria dessas teorias vêm do fato de que frequentemente elas são imediatamente postas em prática. A tese segundo a qual é a própria comunidade que é o sujeito da liturgia, serve como uma autorização para se manipular a liturgia de acordo com a compreensão de cada um. Novas descobertas, como chamam, e as formas que daí seguem, são difundidas com uma rapidez assustadora e com uma tal obediência às modas como há muito deixou de existir às normas da autoridade eclesiástica. Teorias, na área da liturgia, são transformadas em prática muito rapidamente hoje, e a prática, por sua vez, cria ou destrói maneiras de se comportar e pensar.
Entretanto o problema se agravou pelo fato de que o pensamento do recente movimento do Iluminismo vai muito além de Lutero: onde Lutero literalmente levou em conta as considerações da Instituição e fez delas, como norma normans, a base de seus ensaios na Reforma, as hipóteses do criticismo histórico há muito tentam causar uma vasta erosão nos textos. Os relatos da Última Ceia aparecem como o produto da construção litúrgica da comunidade; procura-se um Jesus histórico, entre os textos, que não poderia estar pensando no dom do seu Corpo e Sangue e que não compreendeu sua Cruz como um sacrifício de expiação; deveríamos, melhor, imaginar uma refeição de despedida que incluiu uma perspectiva escatológica.
Não só a autoridade do magistério eclesiástico decaiu aos olhos de muitos, mas a da Escritura também; em seu lugar são postas hipóteses pseudo-históricas mutantes, que imediatamente são substituídas por qualquer ideia arbitrária e põem a liturgia à mercê da moda. Onde, na base de tais ideias, a liturgia é sempre mais livremente manipulada, os fiéis sentem que, na verdade, nada é celebrado, e é compreensível que eles abandonem a liturgia e, com ela, a Igreja.
Por Luís Augusto - membro da ARS
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