Jesus Cristo fundou uma Igreja monárquica, conferindo a S. Pedro o Primado de jurisdição sobre toda a Igreja.
Argumento escriturístico.
O Primado de S. Pedro deduz-se das palavras da promessa e das palavras da colação do primado.
Palavras da promessa. As palavras com que Jesus Cristo prometeu a S. Pedro o primado de jurisdição foram conferidas em Cesaréia de Filipo. Jesus interrogara os discípulos para que dissessem que opiniões corriam a seu respeito. S. Pedro em seu próprio nome, por inspiração espontânea, confessou que “Jesus era o Cristo, o Filho de Deus vivo”.
Foi então que o Salvador lhe dirigiu as célebres palavras: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de João, porque não foram a carne nem o sangue que to revelaram, mas sim meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra eu edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus, e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra será desligado nos céus” (Mat. XVI, 17-19).
Ponhamos em relevo três pontos deste texto, que provam a nossa tese:
Jesus muda o nome de Simão em Pedro. Ora, segundo o uso bíblico, a mudança de nome é sinal de um benefício. Quando Deus quis estabelecer uma aliança com Abraão e constituí-lo pai dos crentes mudou-lhe o nome de Abram em Abraão (Gen. XVII, 4s).
No nosso caso, o novo nome dado por Jesus a Simão, simboliza a missão que Jesus quer lhe confiar. Para o futuro Simão chamar-se-á Pedro, porque há de ser a pedra, ou a rocha sobre a qual Jesus quer fundar a sua Igreja. O trocadilho, que tem toda a sua força na língua aramaica, na qual o nome “Kepha” dado por Jesus á Pedro é masculino e significa rocha, pedra, desaparece em grego e em latim, porque nessas línguas Pedro se diz Petros ou Petrus, e rocha, petra.
Pedro será, com respeito à sociedade cristã, à Igreja de Cristo, o que é a rocha com respeito ao edifício: fundamento sólido que assegurará a estabilidade de todo o edifício, rochedo inabalável, que desafiará os séculos, e sobre o qual se virão quebrar as portas do inferno, ou por outras palavras, os assaltos e o poder do demônio.
Finalmente as chaves do reino dos céus foram confiadas a S. Pedro. A entrega das chaves é um privilégio insigne e especial que confere um poder absoluto. Compara-se o reino dos céus a uma casa. Ora, só poderá entrar em casa quem tem as chaves em seu poder, e aqueles a quem ele quiser abrir a porta. Pedro é constituído único intendente da casa cristã, único introdutor do reino de Deus. É inútil insistir mais. A promessa de Cristo é tão clara que não pode haver dúvida acerca da sua significação. Só a Pedro se muda o nome, só ele é chamado fundamento da futura Igreja, só a ele serão entregues as chaves; se as palavras têm algum sentido, só podem significar o primado de Pedro.
Objetam os adversários, segundo sempre a mesma tática, que a passagem da questão não é autêntica e que foi interpolada quando a Igreja tinha já completado a sua evolução e adquirido a forma católica. A prova está em que só Mateus refere as palavras de Nosso Senhor.
Resposta. A objeção fundada no silêncio de S. Marcos e de S. Lucas não tem valor algum. A dificuldade teria alguma força se os adversários conseguissem provar que a narração dessa passagem era exigida pelo assunto que tratavam. Ora, não conseguem fazer essa demonstração; logo, o silêncio dos dois sinóticos deve atribuir-se a motivos literários, que não admitiam a entrada do texto nas suas narrativas.
Palavras da colação. Duas passagens do Evangelho nos atestam que Jesus conferiu efetivamente a Pedro o poder supremo que lhe tinha prometido.
Missão, confiada a Pedro, de confirmar os seus irmãos. Algum tempo antes da Paixão, Jesus anunciou aos apóstolos a sua falta próxima. Quando predisse a de Pedro declarou que tinha orado especialmente por ele: “Simão, Simão, eis que Satanás vos pediu com insistência para vos joeirar como trigo; mas eu roguei por ti, para que não desfaleça a tua fé; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos” (Luc. XXII, 31s). Quando os Apóstolos, depois de sucumbir à tentação, se erguerem de sua queda, purificados das fraquezas do passado pela prova, como o crivo que aparta a palha do grão, é Simão que tem a missão de os confirmar. Essa missão supõe evidentemente o primado de jurisdição.
S. Pedro é nomeado o pastor das ovelhas de Cristo. A cena passa-se após a Ressurreição. Eis como se refere S. João (João XXI, 15-17): Três vezes perguntou Jesus a Pedro se o amava e três vezes Pedro fez protestos de amor e dedicação inabalável. Então o Salvador, sabendo que estava na véspera de deixar os seus discípulos, confia a Pedro a guarda do seu rebanho, isto é, confia-lhe e cuidado de toda a cristandade, dos cordeiros e das ovelhas. “Apascenta os meus cordeiros”, repete duas vezes; e à terceira: “apascenta as minhas ovelhas”.
Ora, conforme o uso corrente nas línguas orientais, a palavra “apascentar” significa governar. Apascentar os cordeiros e as ovelhas é, portanto, governar com autoridade soberana a Igreja de Cristo; é ser o chefe supremo; é ter o primado.
Argumento histórico. Se encararmos a questão somente sob o aspecto histórico, temos duas teses opostas ntre si: a racionalista e a católica.
Tese racionalista. Segundo os racionalistas, o texto “tu és Pedro e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja” “só teve o sentido e o alcance dogmático, que os teólogos papistas atribuíram no século III, quando os Bispos de Roma dele se tiveram necessidade de fundar as suas pretenções então nascentes” (Sabatier, op. cit., p. 209).
O Primado de S. Pedro nunca foi reconhecido pelos outros apóstolos, mormente por S. Paulo, que nem sempre nomeia Pedro em primeiro lugar (I Cor. I, 12; III, 22; Gal. II, 9), nem receia “resistir-lhe abertamente” (Gal. II, 11).
Tese católica. Nos Atos dos Apóstolos encontra o historiador católico numerosos testemunhos para provar que S. Pedro exerceu o primado desde os primeiros dias da Igreja nascente.
Depois da Ascensão, S. Pedro propõe a eleição de um discípulo para ocupar o lugar de Judas e completar o colégio dos Doze (At. I, 15-22).
É ele o primeiro que prega o Evangelho aos judeus no dia de Pentecostes (At. II, 14; III, 16).
É S. Pedro que, inspirado por Deus recebe na Igreja os primeiros gentios (At. X, 1).
Visita as igrejas (At. IX, 32).
No Concílio de Jerusalém põe termo à longa discussão que ali se trava, decidindo que não se deve impor a circuncisão aos pagãos convertidos, e ninguém ousou opor-se à sua decisão (At. XV, 7-12). Se S. Tiago fala, depois de S. Pedro ter emitido o seu parecer, não foi para discutir a sua opinião, mas unicamente porque, sendo Bispo de Igreja de Jerusalém, julgou que se deviam impor aos gentios algumas prescrições da lei mosaica, cuja infração podia escandalizar os cristãos de origem judaica, que constituíam a maior parte do seu rebanho. Pedia S. Tiago que os gentios se abstivessem:
Dos alimentos oferecidos aos ídolos;
Da impureza, que os pagãos não consideravam como falta grave;
Das carnes sufocadas;
Do sangue, cujo uso estava interdito aos judeus (At. XVII, 20).
No parecer de S. Tiago essas prescrições evitariam o escândalo dos fracos e serviriam para aplanar dificuldades entre os cristãos de diversas proveniências.
Objetam alguns que S. Paulo nunca reconheceu o primado de S. Pedro. Como se explica neste caso que, três anos depois da conversão, foi a Jerusalém expressamente para o visitar? (Gal. I, 18s). Porque não foi antes a S. Tiago (que era o Bispo de Jerusalém) a aos outros? Não será esta uma prova evidente de que o reconhecia como chefe dos Apóstolos?
Porque é que S. Paulo, replicam, não nomeiam Pedro sempre em primeiro lugar? A razão é simples. S. Paulo nunca faz menção de todo o colégio apostólico, e apenas fala incidentalmente de alguns. As vezes, como sucede na sua Epístola aos Coríntios (I Cor. I, 12), nomeia-os em gradação ascendente, pondo o nome de Cristo depois do nome de S. Pedro.
Mas, dizem os racionalistas, não devemos esquecer-nos do conflito de Antioquia, no qual S. Paulo resistiu aberta e publicamente a S. Pedro. Para que os adversários não julguem que procuramos fugir das dificuldades, referiremos aqui o caso com as próprias palavras de Paulo (Gal. II, 11-14): “Quando Cefas veio a Antioquia, eu resisti-lhe abertamente, porque era repreensível. Com efeito, antes de chegarem os que tinham estado com Tiago, ele comia com os gentios: mas depois que eles chegaram, subtraía-se e separava-se dos gentios, temendo ofender os que eram circuncidados. E os outros judeus consentiram na sua simulação. Mas quando eu vi que eles não andavam retamente conforme a verdade do Evangelho, disse a Cefas diante de todos: Se tu, sendo judeu, vives como os gentios e não como os judeus, porque obrigas tu os gentios a viver como judeus?”
Como se vê nessa passagem, o conflito originou-se da famosa questão, levantada pelos judaizantes, a saber, e a lei judaica era obrigatória e se era preciso passar pela circuncisão para entrar na Igreja cristã. Ora, os dois apóstolos - fixemos bem este ponto - estiveram sempre de acordo, defendendo ambos a negativa; portanto, nunca houve conflito entre eles no terreno dogmático. O litígio consistia em que S. Pedro, para não provocar as recriminações dos judaizantes, absteve-se de comer com os gentios que se tinham convertido sem passar pelo judaísmo.
Esta maneira de proceder podia ser diversamente interpretada.
Podia ser uma simples medida de prudência justificada pelo fim que se queria obter. Sendo um, apóstolo dos circuncidados e outro dos incircuncisos, não é para admirar que os dois apóstolos tenham adotado posturas diferentes nesta questão disciplinar. Não se conta porventura nos Atos dos Apóstolos que o próprio S. Paulo, numa circunstância idêntica, procedeu do mesmo modo, circuncidando Timóteo por causa dos judeus que havia naquelas regiões (Lístria e Icônio), apesar das suas convicções serem diversas? (At. XVI, 3).
Também se podia tomar o procedimento de S. Pedro por covardia ou hipocrisia: deste modo o julgou S. Paulo. Pensou que para evitar as funestas conseqüências do procedimento de S. Pedro, devia repreendê-lo. É um caso de correção fraterna dada por um inferior, e na qual este parece ter faltado na moderação e deferência devidas a um superior hierárquico, deixando levar-se por um zelo indiscreto.
Se S. Paulo, objetamos nós, dava tanta importância ao procedimento de S. Pedro, não será porque a sua influência nas Igrejas era maior e mais incontestável? Logo, podemos concluir que o conflito de Antioquia, longe de ser um argumento contra o primado da Pedro, é testemunho em seu favor.
Segunda parte: O primado dos sucessores de Pedro
O primado conferido por Jesus a S. Pedro será acaso um dom pessoal, uma espécie de carisma, ou um poder transmissível a seus sucessores? Neste segundo caso, quais são os sucessores de S. Pedro? Responderemos a essas perguntas mostrando:
Que o primado de Pedro é um poder permanente, e;
Que os sucessores de S. Pedro são os Bispos de Roma.
Tese I - O primado de S. Pedro é transmissível
Esta proposição prova-se com dois argumentos: um escriturístico e outro histórico.
Argumento escriturístico. Do texto de S. Mateus (XVI, 17-19) já citado para provar o primado deduz-se que Pedro foi escolhido para fundamento da Igreja e que recebeu as chaves do reino dos céus. Ora, como o fundamento deve durar enquanto durar o edifício, e Jesus prometeu que havia de estar com a Igreja até o fim do mundo (Mat. XXVIII, 20), segue-se que o primado, princípio e fundamento do edifício, deve durar para sempre e, por conseguinte, deve poder transmitir-se aos seus sucessores. Além disso, a autoridade do primado há de ser tanto mais necessária quanto mais se desenvolver a Igreja e mais estender os seus ramos ao longe: quanto maior é o exercito tanto mais necessidade tem de um chefe supremo.
Argumento histórico. Se o primado foi transmitido aos sucessores de Pedro, a história deve dar nisso testemunho. Esta questão confunde-se com a tese seguinte, no qual veremos quem são os sucessores de S. Pedro.
Tese II - Os sucessores de S. Pedro no primado são os Bispos de Roma
Para o provarmos temos que demonstrar:
Que Pedro esteve em Roma e que foi o primeiro Bispo desta Igreja;
Que a primazia dos Bispos de Roma, seus sucessores, foi sempre reconhecida por toda a Igreja. É uma questão histórica.
A permanência e a morte de S. Pedro em Roma. Estado da questão.
Trata-se de investigar se S. Pedro esteve na capital do Império romano e se aí fundou uma comunidade cristã. Não é necessário provar que permaneceu durante muito tempo em Roma, nem que a sua permanência foi contínua. Alguns católicos, como Barónio, sustentaram que o pontificado de S. Pedro em Roma começou no ano 42 e durou 25 anos. Parece-nos exagerado; contudo esta opinião funda-se em vários testemunhos de valor:
No catálogo liberiano, que contém a cronologia dos papas como era recebida na Igreja romana;
No testemunho de Lactâncio; e
No do historiador Eusébio.
Destes testemunhos podemos deduzir que era tradição geral e constante no século IV que S. Pedro veio a Roma e governou a Igreja durante 25 anos. E como é quase certo que o catálogo liberiano deriva do catálogo de Hipólito e que Eusébio se serviu dos catálogos anteriores e especialmente da lista de S. Ireneu, segue-se que os testemunhos precedentes representem uma tradição muito anterior a sua época.
Notemos que os defensores da tese dos 25 anos de episcopado de S. Pedro em Roma não sustentam que ele nunca tivesse se ausentado daquela cidade. Com efeito, os Atos dizem-nos que Pedro esteve em Jerusalém pelas festas da Páscoa no ano 44 e presidiu ao Concílio na mesma cidade no ano 50. O governo de uma igreja não requer a permanência contínua do seu chefe, sobretudo nos tempos primitivos da Igreja.
A forma da Igreja primitiva não era semelhante à atual, porque os apóstolos eram missionários, que se lembravam das palavras do seu Mestre: “Ide, ensinai todas as gentes”. Diante dum campo tão vasto, seria para estranhar encontrá-los presos a uma residência fixa. Estavam ora num lugar, ora noutro, conforme a sementeira prometia maior messe.
Os críticos racionalistas e protestantes negaram a permanência e a morte de S. Pedro em Roma, porque na negação destes dois fatos julgavam encontrar um argumento de valor contra o primado do Papa. Mas os seus argumentos eram de tão pouca força que o próprio Renan, em apêndice ao seu livro "Antéchrist" (1873), deu “como provável a permanência de S. Pedro na capital do Império”.
Os críticos atuais não têm dificuldade de admitir a tese católica. Citemos algumas das linhas de Harnack ("Cronologia"): “O martírio de S. Pedro em Roma foi antigamente combatido pelos preconceitos tendenciosos dos protestantes... Mas foi um erro que todo investigador, que não queira ser cego, pode verificar”. “Hoje em dia", diz o mesmo crítico num discurso (1907) pronunciado na Universidade de Berlim, "sabemos que esta vinda (de S. Pedro a Roma) é um fato incontestável e que o começo da primazia romana remonta ao século II”.
Como a tese católica, que afirma que S. Pedro veio a Roma onde fundou uma Igreja e sofreu o martírio, não é contestada pelos nossos adversários (embora haja ainda muitas pessoas teimosas), bastará mencionar rapidamente os principais testemunhos em que se baseia.
Apresentamo-los por ordem regressiva e de século em século:
No começo do século III, temos o testemunho do sacerdote romano Caio e de Tertuliano. Caio dizia, escrevendo contra Proclo: “Posso mostrar-te o túmulo dos Apóstolos. Ou venhas ao Vaticano os passes pela via ostiense, poderás ver os sepulcros dos fundadores da nossa Igreja”. Esse testemunho, que é do ano 200 mais ou menos, prova que neste tempo os túmulos do Vaticano e da via de Óstia guardavam as relíquias de S. Pedro e de S. Paulo, fundadores da Igreja de Roma e martirizados no tempo de Nero. Tertuliano nesta mesma época, disputando contra os gnósticos, menciona o martírio que, sob o reinado de Nero, S. Pedro e S. Paulo sofreram em Roma, o primeiro numa cruz e o segundo à espada do algoz.
Nos fins do século II. S. Ireneu escrevia nas Gálias: “Foram os Apóstolos Pedro e Paulo que evangelizaram a Igreja Romana... por isso, é a mais antiga de todas e a mais conhecida, por conservar a tradição dos apóstolos; por esse motivo, as demais igrejas devem voltar-se para ela e reconhecer-lhe a superioridade”. Dionísio de Corinto escrevia em 170 aos Romanos: “Vindo ambos a Corinto, os dois apóstolos Pedro e Paulo nos ensinaram a doutrina evangélica; partindo depois juntos para a Itália, transmitiram-nos os mesmos ensinamentos, pois padeceram o martírio ao mesmo tempo”.
Entre os padres apostólicos citemos os testemunhos de S. Inácio e do papa S. Clemente. S. Inácio fora condenado às feras e enviado a Roma para ali sofrer o último suplício. Conhecendo os esforços da Igreja de Roma para o salvar, escreveu-lhe que não se opusesse à sua morte, a adjurou-a nestes termos: “Não vo-lo ordeno como Pedro e Paulo; eles eram apóstolos e eu sou apenas um condenado”. “Estas palavras", diz Mons. Duchesne, "não dizem expressamente que S. Pedro veio a Roma. Mas supondo que tivesse vindo, S. Inácio não teria falado de outra forma; e no caso contrário a frase não teria sentido”. S. Clemente, na Carta aos Coríntios, escrita entre os anos 95 e 98, põe em relevo os padecimentos dos dois apóstolos Pedro e Paulo, dizendo que “são entre nós o mais belo exemplo”. S. Clemente, que é romano e envia sua carta na qualidade de Bispo de Roma, insiste na circunstância, que os atos de heroísmo por ele descritos foram vistos com os seus próprios olhos e que o martírio de S. Pedro e S. Paulo foram um grande exemplo “entre nós”, isto é, em Roma.
Dos tempos apostólicos temos o testemunho do próprio S. Pedro, que escrevendo aos fiéis da Ásia, data de Babilônia a sua primeira epístola (I Pedro, V, 13). Ora, por “Babilônia", diz Renan, "S. Pedro quer sem dúvida significar a cidade de Roma. Por esse nome era designada a capital do Império entre as cristandades primitivas”.
Objetam os protestantes contra a tese católica que S. Lucas nos Atos dos Apóstolos, S. Paulo na sua Epístola aos Romanos e Flávio Josefo, que narra a perseguição de Nero, não fazem menção de S. Pedro.
Resposta. O argumento fundado no silêncio não tem valor algum, a não ser que se prova que o fato passado em silêncio devia ser tratado ou mencionado pelo historiador. Ora:
Pelo que diz respeito a S. Lucas, a objeção não tem fundamento algum, porque os Atos dos Apóstolos só descrevem os começos da Igreja Cristã nos doze primeiros capítulos; e do capítulo X em diante só falam dos Atos de Paulo. Além disso, os Atos não são de modo algum completos, pois não falam também do conflito de Antioquia.
Não nos deve causar admiração que S. Paulo não mencione S. Pedro na Epístola aos Romanos, pois em nenhuma das outras epístolas costuma saudar os bispos da cristandade ou igreja a que se dirige. Quando fala aos Efésios também não fala de Timóteo que era o seu bispo.
Josefo declara expressamente que passava em silêncio a maior parte dos crimes de Nero. Omite a crucificação de S. Pedro, mas também não fala do incêndio de Roma nem da morte de Sêneca.
Conclusão. O fato da vinda de S. Pedro a Roma e do martírio nesta cidade não tem contra si objeção alguma de peso; e em seu favor temos números e bem fundados testemunhos, que de geração em geração nos levam aos tempos apostólicos.
Poderíamos também acrescentar que os fatos são confirmados pelos monumentos que nos atestam a presença do Príncipe dos Apóstolos em Roma. Tais são as duas cadeiras de S. Pedro, uma das quais se conserva no Vaticano, as pinturas e as inscrições das catacumbas, que datam do século II, onde o seu nome é mencionado, e sobretudo as escavações feitas debaixo da Basílica de S. Pedro. Dada a configuração do terreno e outras dificuldades técnicas era inexplicável que os cristãos levantassem ali a basílica primitiva, se não quisessem coloca-la precisamente no local do martírio de S. Pedro. Mas não é preciso insistir, porque a tese católica não tem atualmente contra si crítico algum de valor.
Os Bispos de Roma tiveram sempre a primazia. - É uma questão de direito. Se S. Pedro é o primeiro Bispo de Roma, o primado de Pedro devia transmitir-se aos seus sucessores na sua Sé. Investiguemos a questão de fato e vejamos o eu diz a história.
Essa tese é da maior importância, porque, se os documentos históricos demonstrassem eu no princípio o primado dos Bispos de Roma não foi reconhecido, a questão de direito ficaria profundamente abalada. Não é, pois, para estranhar, que os racionalistas, protestantes e modernistas se tenham empenhado em provar historicamente que o primado dos Bispos de Roma não existia nos primeiros tempos.
Tese racionalista. A tese racionalista expõe-se em poucas palavras. Segundo a sua teoria, ao começo todos os bispos eram iguais em autoridade e não havia distinção entre eles. Pouco a pouco foram-se arrogando um poder maior ou menor conforme a importância da cidade em que tinham a sede. Ora, como Roma era a capital do Império romano, os seus Bispos foram considerados como chefes da Igreja universal.
A esta razão de maior peso juntam-se outras circunstâncias favoráveis, tais como a ambição dos Bispos de Roma, a sua prudência no julgamento das causas submetidas ao seu arbítrio e os serviços por eles prestados na queda do Império.
O primado do Bispo de Roma começa somente nos fins do século II, quando o papa Vitor, para pôr fim à controvérsia da celebração da festa pascal, “publicou em 194 um edito imperioso que expulsava da comunhão católica e declarava heréticas todas as Igrejas da Ásia e do outras partes, que não seguissem na Páscoa o costume romano” (Sabatier op. cit., p. 193.).
A tese católica. Os historiadores católicos defendem que o primado do Bispo de Roma foi sempre reconhecido em toda a Igreja. Nos princípios do século IV a primazia é um fato incontestado.
Todos reconhecem que nesta época os Bispos de Roma falam e procedem com plena consciência em sue primado. O papa Silvestre envia os seus legados para presidirem o concílio de Nicéia (325) e Júlio I declara que as causas dos Bispos devem ser julgadas em Roma. O papa Libério, a quem o imperador Constâncio pediu que condenassem Atanásio - prova que lhe reconhecia o direito - recusa-se a fazê-lo.
Do mesmo modo, os Padres são unânimes em admitir o primado do Bispo de Roma. S. Optato de Mileto, argumentando contra os donatistas, segundo os quais a Igreja era constituída só pelos justos e a santidade era o distintivo essencial da Igreja, responde que a unidade é também nota essencial e que é absolutamente indispensável permanecer em comunhão com a Cátedra de Pedro. S. Ambrósio considera a Igreja de Roma como o centro e cabeça de todo o universo católico. Os bispos orientais S. Atanásio, S. Gregório de Nazianzo e S. João Crisóstomo falam do bispo de Roma como do chefe da Igreja universal.
Como o primado de Pedro é universalmente reconhecido no século IV, podemos limitar a nossa investigação aos séculos precedentes. Ora, nos três primeiros séculos, a existência do primado romano é testemunhada pelos escritos dos Padres, pelos concílios e pelo costume que havia de apelar para o Bispo de Roma a fim de dirimir as questões.
Examinemos, em primeiro lugar, os testemunhos dos Padres da Igreja.
No século III, Orígenes escrevia ao papa Fabião, a dar conta da sua fé. Tertuliano, antes de cair na heresia, admitia o primado de S. Pedro. Depois de se fazer montanista, mete-o a ridículo, prova de que lhe reconhecia a existência.
No fim do século II S. Ireneu estabelece como critério das tradições apostólicas a conformidade da doutrina com a Igreja romana, que deve servir de regra de fé, por causa do primado que herdou de S. Pedro. S. Policarpo, discípulo de S. João, e Abécio visitam o Bispo de Roma e consultam-no acerca de assuntos da fé a da disciplina. Os próprios hereges Marcião e os montanista querem que sua doutrina seja aprovada pela Sé Apostólica, No princípio do século II, S. Inácio escreve aos romanos que a Igreja de Roma preside as demais.
No século I. Em 96, o Bispo de Roma, Clemente, escrevendo aos Coríntios, para chamar à ordem os que injustamente tinham demitido os presbíteros, declaram-lhes que serão réus de falta grave se não lhe obedecerem. O procedimento de Clemente de Roma tem maior importância se considerarmos que nesta época ainda vivia o Apóstolo João que não deixaria de intervir se o Bispo de Roma estivesse no mesmo plano dos outros bispos.
O primado dos Bispos de Roma foi reconhecido pelos concílios. Não podemos aduzir testemunhos anteriores ao século IV, visto que o primeiro concílio só se realizou em 325, em Nicéia.
No concílio de Éfeso (431) S. Cirilo de Alexandria, que era o primeiro entre os patriarcas do Oriente, pediu ao Bispo de Roma que sentenciasse e definisse contra a heresia nestoriana.
Os Padres do concílio de Calcedônia (451), quase todos orientais, dirigiram uma carta ao papa S. Leão a solicitar a confirmação de seus decretos. Este respondeu-lhes com uma carta célebre na qual condenava os erros de Eutiques, e, ao mesmo, enviou legados para que em seu nome presidissem ao concílio. O concílio encerrou-se com essa fórmula: “Assim falou o concílio pela boca de Leão”.
Os concílios de Constantinopla, - o terceiro celebrado em 680, o oitavo em 869, - o concílio de Florença em 1439, composto de Bispos gregos e latinos, proclamaram sucessivamente o primado do sucessor de Pedro e afirmaram que Jesus Cristo lhe deu, na pessoa de S. Pedro, “plano poder de apascentar, dirigir e governar toda a sua Igreja”.
O primado dos Bispos de Roma é também testemunhado pelo fato de intervirem em diversas Igrejas para dirimir as questões. Não falando de Clemente de Roma, que pelos fins do século I escreveu à Igreja de Corinto para a trazer ao bom caminho, vemos mais tarde os Bispos orientais, entre outros S. Atanásio e S. João Crisóstomo, apelar para o Bispo de Roma na defesa dos seus direitos.
Objetam os protestantes:
Os que tinham o nome de bispos, na realidade eram apenas presidentes do presbyterium;
Em todo caso, a sua autoridade não era universalmente reconhecida, pois S. Cipriano e os bispos da África resistiram ao decreto do papa S. Estevão que proibia a reiteração do batismo conferido pelos herejes.
Resposta.
Para provar que os Bispos eram somente simples presidentes do presbyterium, alegam que a primeira Carta de Clemente de Roma, as cartas de S. Inácio aos Romanos e o Pastor de Hermas não falam dum bispo monárquico de Roma. Ora, já dissemos que o silêncio dum escritor acerca de um fato, não prova necessariamente contra a sua existência. Em 170, Dionísio de Corinto envia uma resposta à Igreja de Roma e não ao seu bispo Sotero, e contudo Harnack, que faz a objeção, admite que Sotero era Bispo monárquico. Pouco importa, portanto, que a primeira carta de S. Clemente de Roma aos Coríntios não tenha a sua assinatura e seja enviada em nome da Igreja de Roma: não há dúvida que o seu autor seja um personagem único, o papa S. Clemente. Ainda que a carta de S. Inácio aos Romanos (107) e o Pastor de Hermas não mencionem o Bispo de Roma, não se deve daí concluir que não existia, pois também não falam dos presbíteros e dos diáconos de Roma, e a sua existência não é impugnada.
É certo que S. Cipriano, julgando que a reiteração do batismo era sobretudo uma questão disciplinar, resistiu ao decreto do papa Estevão. Mas a resistência de um homem, ainda que muito santo e de muita boa-fé, à autoridade superior, não destrói nem enfraquece essa autoridade. Grandes bispos como Bossuet, aderiram a proposições condenadas, reconhecendo contudo o primado do Soberano Pontífice.
Conclusão. A primazia dos Bispos de Roma deduz-se de dois fatos:
De S. Pedro ter sido Bispo de Roma; e
De o primado ter sido sempre universalmente reconhecido pela Igreja.
Portanto, não é verdade que a autoridade suprema dos papas deva a sua origem à ambição dos Bispos de Roma e à abdicação de outros. Se, como pretendem os adversários, os bispos tivessem sido iguais ao princípio por direito divino, ter-se-ia dado num momento da história uma transformação completa na fé e na disciplina de toda a Igreja.
Ora, tal acontecimento não se poderia dar sem se terem provocado dissenções e reclamações inúmeras da parte de outros bispos, lesados nos seus privilégios. Como a história não apresenta sinal algum dessa agitação, e só houve discussões sobre pontos secundários, como a celebração da festa da Páscoa e a questão da reiteração do batismo, segue-se que o primado do Bispo de Roma nunca foi impugnado e que a Igreja universal sempre lhe reconheceu não só o primado de honra, mas também o de jurisdição.
§ 4º - Jesus deu a sua Igreja o privilégio da infalibilidade
Vimos que Jesus Cristo fundou uma Igreja hierárquica, conferindo aos apóstolos e aos bispos seus sucessores, os poderes de ensinar, de santificar e de governar. Demonstraremos neste parágrafo que Jesus ligou ao poder de ensinar o privilégio da infalibilidade. Trataremos:
Do conceito de infalibilidade;
Das provas da sua existência;
Daqueles a quem foi concedido o privilégio.
Conceito de infalibilidade. Que deve entender-se por infalibilidade? A infalibilidade concedida por Jesus Cristo à sua Igreja é a preservação de todo erro doutrinal, garantida pela assistência especial do Espírito Santo. Não é simples inerrância de fato, mas de direito. É impossibilidade tal, que toda a doutrina, proposta por esse magistério infalível, deve ser crida como verdadeira, pois como tal é proposta.
Portanto, não se deve confundir a infalibilidade:
Com a inspiração, que consiste no impulso divino, que leva os escritores sagrados a escreverem tudo o que Deus quer, e só o que Deus quer;
Nem com a revelação, que supõe a manifestação duma verdade antes ignorada.
O privilégio da infalibilidade não faz com que a Igreja descubra verdades novas; garante-lhe somente que, devido à assistência divina, não pode errar nem, por conseguinte, induzir no erro, no que respeita a questões de fé ou moral.
Falso conceito de infalibilidade. O conceito modernista de infalibilidade funda-se na idéia falsa que os modernistas têm da revelação e, portanto, é também falso e deve rejeitar-se. Segundo o sistema modernista, a revelação opera-se na alma de cada indivíduo, pois “consiste na consciência que o homem forma das suas relações com Deus”. Por conseqüência, a infalibilidade da Igreja docente consistiria em interpretar o sentir coletivo dos fiéis e “sancionar as opiniões comuns da Igreja discente”. Este estranho conceito de infalibilidade foi condenado no decreto Lamentabili.
Existência da infalibilidade.
Adversários. A existência da infalibilidade da Igreja foi negada:
Pelos racionalistas e protestantes liberais. É lógico, uma vez que admitam que Jesus Cristo tenha pensado em fundar uma Igreja;
Pelos protestantes ortodoxos; porque, admitindo eles que todos os membros da Igreja são iguais, é natural que a interpretação da doutrina católica esteja sujeita à razão individual (teoria do livre exame).
Provas. A infalibilidade da Igreja funda-se em dois argumentos:
um a priori, ou de razão; e
outro a posteriori ou histórico.
Argumento de razão. Antes de expormos este argumento, é conveniente o lugar que ocupa na nossa demonstração, para que não haja equívocos acerca do fim que prosseguimos. Afirmamos - depois diremos porquê - que se Jesus Cristo quis conservar as verdades reveladas na sua integridade, teve de confia-las a uma autoridade viva e infalível e não somente depositá-las, como letra morta, num livro, porto que inspirado.
A isso objetam os protestantes que apoiamos a nossa tese num argumento a priori e que todas as nossas provas se reduzem a afirmar que uma coisa é, porque assim deve ser. Ora, “nas questões de fato, prosseguem eles, a prova de fato, se não é a única legítima, ao menos é a única decisiva. Se da conveniência, da utilidade e da necessidade pressuposta duma concessão divina, se pudesse concluir a sua realidade, aonde chegaríamos nós?" (Jalaguier, "De l´Église").
É certo que da conveniência de uma coisa nem sempre se pode concluir a sua existência. Poderíamos, por exemplo, perguntar-nos porque motivo foram os homens abandonados por Deus nos seus erros durante tantos séculos; porque tardou tanto a Redenção; porque não lhe deu Jesus Cristo tanto esplendor que impelisse os homens a aceita-la. Portanto, a questão é principalmente histórica e sob esse aspecto será tratada.
Antes, porém, temos o direito de perguntar se a tese católica, que defenda a instituição de um magistério vivo e infalível para nos ensinar as verdades contidas na Escritura e na Tradição, não está mais bem fundada que a teoria protestante, que admite a infalibilidade da Escritura como regra única de fé. Deve-se dizer que regra de fé é o meio prático de conhecer a doutrina de Jesus Cristo.
Demonstraremos, portanto - sem prescindir do argumento histórico - que a regra de fé dos protestantes é insuficiente para o conhecimento e conservação das verdades reveladas, e que a regra de fé Igreja católica possui todas as condições requeridas.
A regra de fé protestante é insuficiente. Não é necessária, nem foi instituída uma autoridade viva, dizem os protestantes, para conhecermos as verdades ensinadas por Jesus Cristo. A única regra de fé é a Sagrada Escritura. Por conseguinte, cada fiel pode ler e interpretar a Escritura conforme as luzes da sua consciência e haurir os dogmas e preceitos conducentes à sua edificação.
Não é difícil provar que esta regra de fé absolutamente insuficiente.
Primeiramente, como poderemos saber quais são os livros inspirados se não há uma autoridade que não garanta a sua inspiração, ou se não há ninguém para nos assegurar que o texto que possuímos não foi interpolado pelos copistas? Já dizia S. Agostinho que não acreditaria nos Evangelhos se não cresse antes na Igreja.
Como resolveremos as dificuldades? Pelo livre exame e aplicando as regras críticas e da exegese, respondem os luteranos e calvinistas. Por meio da história e da tradição, dizem os anglicanos. Pela inspiração particular, pela iluminação do Espírito Santo que ilumina a consciência de cada indivíduo, afirmam os anabatistas, os “quakers”, os metodistas e as seitas místicas. Esta variedade de respostas bastaria para fazer um juízo claro da teoria protestante. Seja qual for a solução adotada, é evidente que obteremos tantas interpretações quanto indivíduos “quot capita tot sensus”. Se não aceitarmos outra guia, senão a razão individual ou a inspiração do Espírito Santo, cairemos na anarquia intelectual ou no iluminismo.
Quando muito, os que estudarem a Bíblia adquirirão, até certo ponto, uma espécie de verdade subjetiva. Mas como conhecerão as verdades os que não são instruídos, nem tem vagar para ler e compreender a Escritura? E como poderiam obtê-la antigamente aqueles que não tinham meios para adquirir a Bíblia, antes da invenção da imprensa, quando os manuscritos eram tão raros e custosos?
Mais: no começo do cristianismo não existia o Novo Testamento e Jesus Cristo não deixou escrito. Disse aos seus apóstolos: “ide, ensinai a todas as gentes”, e não lhes recomendou que escrevessem a sua doutrina; por isso os apóstolos nunca tiveram a pretensão de expor ex-professo por escrito os ensinamentos de Jesus. Ordinariamente os seus escritos eram cartas de circunstância, destinadas a lembras alguns pontos da sua catequese. Queiram dizer-nos os protestantes qual era a regra de fé antes da existência desses escritos.
A regra de fé católica, pelo contrário, é meio seguro de conhecermos a doutrina integral de Cristo. Como é fácil de ver, não contém nenhum dos inconvenientes co sistema protestante. É certo que o catolicismo admite a infalibilidade da Sagrada Escritura; mas, além dessa fonte de revelação, admite outra mais importante e anterior à Escritura, que é a Tradição. É esta, sobretudo - e nisto consiste a diferença essencial que existe entre a teoria protestante e a teoria católica, - que ensina que Jesus constituiu uma autoridade viva, um magistério infalível que, com a assistência do Espírito Santo, recebeu a missão de determinar quais os livros inspirados, de interpreta-los autenticamente, de haurir nesta fonte, como na da Tradição, a verdadeira doutrina de Jesus, para depois a expor aos sábios e ignorantes.
Até mesmo alguns protestantes reconhecem que há entre os dois sistemas, considerados unicamente à luz da razão, certa vantagem a favor do catolicismo. “O sistema católico", diz Sabatier, "colocou a infalibilidade divina numa instituição social, admiravelmente organizada, com um chefe supremo, o Papa. O sistema protestante colocou a infalibilidade num livro. Ora, sob qualquer aspecto que se considere os dois sistemas, as vantagens estão indubitavelmente do lado do catolicismo” (Sabatier, op. cit., p. 306). Não pretendíamos demonstrar outra coisa com o argumento a priori; alcançamos, portanto, o nosso intento.
Argumento histórico. Somos chegados ao campo positivo da história. O que Jesus Cristo devia fazer, tê-lo-á feito? Terá instituído uma autoridade viva e infalível encarregada de guardar e ensinar a sua doutrina?
O primeiro ponto ficou anteriormente demonstrado: Jesus Cristo instituiu uma Igreja hierárquica e chefes a quem concedeu o poder de ensinar. Resta agora examinar o segundo ponto, no qual provaremos que o poder de ensinar, como foi conferido por Jesus Cristo, comporta o privilégio da infalibilidade.
Esta segunda proposição apóia-se nos textos da Escritura, no modo de proceder dos Apóstolos e na crença da antiguidade cristã:
Nos textos da Escritura. A Pedro, em especial, prometeu Jesus Cristo que “as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Igreja) (Mat. XVI, 18); e a todos os Apóstolos prometeu, por duas vezes, enviar-lhes o Espírito da verdade (João XIV, 16; XV, 26) e ficar com eles até o fim do mundo (Mat. XXVIII, 20). Essas promessas significam claramente que a Igreja é indefectível; que os Apóstolos e seus sucessores não poderão errar quando ensinarem a doutrina de Jesus; porque a assistência de Cristo não pode ser em vão, nem o erro estar onde se encontra o Espírito da verdade;
No modo de proceder dos Apóstolos. Do seu ensino se depreende que tinham consciência de ser assistidos pelo Espírito Santo. O decreto do concílio de Jerusalém termina com essas palavras; “Assim pareceu ao Espírito Santo e a nós” (At. XV, 28). Os Apóstolos pregam a doutrina evangélica “não como palavra de homens, mas como palavra de Deus, que na verdade o é” (I Tes. II, 13), a que é necessário dar pleno assentimento (II Cor. X, 5) e cujo depósito convém guardar cuidadosamente (I Tim. VI, 20). Além disso, confirmam a verdade de sua doutrina os muitos milagres (At, II, 43; III, 1-8; V, 15; IX, 34): prova evidente de que eram intérpretes infalíveis de doutrina de Cristo, de outro modo Deus não a confirmaria com o seu poder;
Na crença da antiguidade cristã. Concedem os nossos adversários que a crença num magistério vivo e infalível já existia no século III. Basta portanto aduzir testemunhos anteriores:
Na primeira metade do século III, Orígenes, aos herejes que alegam as Escrituras, responde que é necessário atender à tradição eclesiástica e crer no que foi transmitido pela secessão de Igreja de Deus. Tertuliano, no tratado “Da prescrição”, opõe aos herejes o argumento da prescrição e afirma que a regra de fé é a doutrina que a Igreja recebeu dos Apóstolos. É necessário não nos enganarmos a respeito do sentido da palavra prescrição que usa Tertuliano. Em direito moderno, quando se trata da propriedade, invoca-se a posse de longa duração, como um título que dirime qualquer reivindicação: é a prescrição longi temporis. Ora, não propriamente nesta sentido que a emprega Tertuliano, para se desembaraçar dos herejes e negar-lhes as suas pretenções. Mostra que o seu direito de propriedade deriva de um legado recebido em forma devida, que é o legitimo herdeiro dos Apóstolos. É, portanto, o argumento da tradição que Tertuliano a modo de questão preliminar, permitindo-lhe rejeitar qualquer discussão com os que não possuem essa tradição e formulam novas asserções esforçando-se ao mesmo tempo por justifica-las com as Escrituras e com a razão: é a prescrição de inovação. O argumento de prescrição reduz-se pois a isso: Não podemos discutir convosco (herejes); porque toda doutrina nova, pelo fato de ser nova, isto é, de não ser conforme com a regra de fé transmitida pelos Apóstolos, está condenada de antemão e antes de qualquer exame.
Nos fins do século II, S. Ireneu, na carta a Florino e no livro Contra as heresias, apresenta a Tradição apostólica como a são doutrina, como uma tradição que não é meramente humana. Donde se segue que não há motivo para discutir com os herejes e que estão condenados pelo fato de discordarem da Tradição. É o mesmo argumento que retomará mais tarde Tertuliano, dando-lhe uma forma mais erudita e jurídica.
Pelo ano 160, Hegesipo apresenta, como critério da fé ortodoxa, a conformidade com a doutrina dos Apóstolos transmitida por meio dos Bispos. Na primeira metade do século II, Policarpo e Papias apresentam a doutrina dos Apóstolos como a única verdadeira, como uma regra segura de fé. Nos princípios do mesmo século, temos o testemunho de S. Inácio. Afirma esse santo eu a Igreja é infalível e que a incorporação nela é necessária para se salvar.
Conclusão. Das duas provas da razão e da história se depreende que o poder doutrinal, conferido por Jesus Cristo à Igreja docente, traz consigo o privilégio da infalibilidade, isto é, que a Igreja não pode errar quando expõe a doutrina de Cristo.
Sujeito da infalibilidade. Jesus Cristo dotou a sua Igreja com o privilégio da infalibilidade. Mas a quem concedeu este privilégio? Indubitavelmente àqueles que receberam o poder de ensinar, isto é, aos Apóstolos todos, e dum modo especial, a Pedro, poder e privilégio que transmitiram depois aos seus sucessores.
Fonte: Bibliografia: Tratados de filosofia; em particular o Manual de Filosofia de C. Lahr (Porto, Apostolado da Imprensa), e os de Fonsegrive, Jolivet e G. Sortais. - S. Tomás, Summa Teológica, De veritate. - Kleutgen, La philosophie scholastique (Gaume). - De Pascal, Le Christianisme, I. Part. La verité da la Religion (Lethielleux). - P. Julien Werquin, L´Évidence et la Science.
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