Esta seção de apologética divide-se em três seções.
A primeira seção compreende dois capítulos agrupados sob o título geral de
“Investigação da verdadeira Igreja”.
Nesta seção discutiremos duas questões:
Terá Jesus Cristo fundado uma instituição, uma Igreja, cujos traços essenciais possamos descobrir na Escritura, e à qual tenha confiado o depósito exclusivo de sua doutrina?
No caso afirmativo, quais são as notas pelas quais podemos reconhecer a verdadeira Igreja, uma vez que há várias que se dizem fundadas por Jesus Cristo?
Segunda seção. Depois de se ter demonstrado que a Igreja Romana é a verdadeira Igreja, pode dizer-se que o trabalho do apologista terminou, porque as outras duas seções já não pertencem à apologética construtiva. Contudo tratamos essas questões para responder as perguntas que geralmente se fazem nos programas de instrução religiosa e que são de grande importância.
A segunda seção, que tem por título a “Constituição de Igreja”, compreende dois capítulos:
No primeiro estuda-se a hierarquia e os poderes da Igreja sob o aspecto teológico;
O segundo trata dos direitos da Igreja e suas relações com o Estado.
Terceira seção. A terceira seção destina-se a defender a Igreja das principais objeções e ataques que mais freqüentemente os seus adversários, mal intencionados ou mal informados, lhe opõem. Esta seção terá dois capítulos:
A Igreja e a história; E a Igreja ou a Fé perante a razão e a ciência.
SEÇÃO I - INVESTIGAÇÃO DA VERDADEIRA IGREJA
CAPÍTULO I - INSTITUIÇÃO DE UMA IGREJA
I. Noções preliminares.
Para evitar confusões, é conveniente, antes de mais nada, determinar o sentido das duas expressões “reino de Deus” e “Igreja”, cujo uso será freqüente nesse capítulo.
Conceito de reino de Deus. A expressão “reino de Deus” aparece ao menos cinqüenta vezes nos Evangelhos de S. Marcos e S. Lucas. S. Mateus, pelo contrário, emprega-a raramente (XII, 28; XXI, 31, 43), substituindo-a pelo hebraísmo “reino dos céus”. Mas pouco importa, porque as duas expressões têm o mesmo sentido. O reino de Deus, ou reino dos céus, era o assunto em que Jesus mais insistia.
Os judeus, fundando-se nos oráculos messiânicos, esperaram durante alguns séculos o estabelecimento de um grande Reino, que devia propagar-se pelo mundo, e dum Rei que Javé deveria enviar para governar. Portanto, a fundação desse reino devia se a obra do Messias. Mas o reino que Jesus prega não era semelhante àquele que os judeus imaginaram. É a nova religião, a grande sociedade cristã que Jesus Cristo vai fundar, e que há de implantar na terra até o dia em que será juiz e rei na sua última vinda. O reino de Deus tem, pois, duas faces:
Um reino terrestre, no qual poderão entrar todos os homens do mundo;
Um reino celeste e transcendente, um reino escatológico, que será estabelecido no céu.
Conceito de Igreja. Etimologicamente, a palavra Igreja (do grego “ekklêsia”, assembléia) designa uma assembléia de cidadãos convocados por um pregoeiro público.
Na linguagem escriturística a palavra tem duas significações.
No sentido restrito e conforme a etimologia, aplica-se quer a assembléia dos cristãos que se reúnem numa casa particular (Rom. XVI, 5; Col. IV, 15), quer ao conjunto de fiéis de uma cidade ou região; tais são, por exemplo, a igreja de Jerusalém (Act., VIII, 1; XI, 22; XV, 24), a igreja de Antioquia (Act. XIV, 26; XV, 3; XXIII, 1), as igrejas da Judéia (Gal., I, 22), da Ásia (I Cor., XVI, 19) e da Macedônia (II Cor., VIII, 1).
Geralmente, Igreja designa a sociedade universal dos discípulos de Cristo. Nessa significação é empregada no evangelho de S. Mateus no célebre “Tu es Petrus”... Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha “Igreja” (Mat. XVI, 18). Aparece o mesmo sentido com bastante freqüência nos Actos (V, 11; VIII, 1, 3;IX, 31), nas Epístolas de S. Paulo (I Cor., X, 32; XI, 16; XIV, 1; XV, 9; Gal., I, 13; Ef., I, 23; V, 23; Col., I, 18), Epístola de S. Tiago (V, 14).
Na linguagem dos SS. Padres, a palavra Igreja encontra-se em ambos os sentidos:
Em sentido restrito ou de assembléia dos fiéis, por exemplo, Didaché (IV, 12); ou de agrupamento local ou regional dos fiéis; como na Epístola de S. Clemente para os Coríntios no endereço e XLVII, 6;
Em sentido geral, para designar o conjunto dos fiéis pertencentes à religião cristã, encontra-se nos escritos do papa S. Clemente, de S. Inácio, de S. Ireneu, de Tertuliano e de S. Cipriano.
Conforme a doutrina católica, a palavra Igreja, tomada em sentido geral, aplica-se à sociedade dos fiéis que professam a religião de Cristo, sob a autoridade do Papa e dos Bispos.
Como sociedade, a Igreja possui a três características comuns a toda sociedade, a saber: fim, sujeitos aptos para atingir o fim, e a autoridade com a missão de os conduzir ao fim.
Os caracteres da Igreja como sociedade religiosa, tem natureza especial. O fim que prossegue é de ordem sobrenatural, pois não tem em vista os interesses temporais dos súditos, mas unicamente a salvação de suas almas. A autoridade, que assume a direção, é uma autoridade sobrenatural que recebeu de Jesus Cristo um tríplice poder:
O poder doutrinal infalível, para ensinar a doutrina de Cristo;
O poder sacerdotal para comunicar a vida divina pelos sacramentos e;
O poder de governar, que impõe aos fiéis o que é necessário e útil para sua salvação.
Nota
O conceito de reino é muito mais extenso que o da Igreja. Esta faz parte do reino; é o seu lado visível o social, mas não é todo o reino, pois este tem dois aspectos; o terrestre e o celeste ou escatológico. Contudo:
Igreja, tomada no sentido lato, confunde-se como reino de Deus. Com efeito, os teólogos distinguem o corpo e a alma da Igreja, isto é, a comunidade visível e hierárquica dos cristãos, e a sociedade invisível, a alma, à qual pertencem todos os que estão em estado de graça, ainda que professem outra religião. Compreendem, além disso, na noção de Igreja não somente os fiéis deste mundo (Igreja militante), mas também os eleitos que estão no Céu (Igreja triunfante) e as almas que sofrem no Purgatório (Igreja purgante ou padecente).
Sob o ponto de vista apologético, como aqui o entendemos, a palavra Igreja significa a sociedade visível e hierárquica dos cristãos deste mundo, considerado sob o seu aspecto esterno e social (sentido geral).
II. Divisão do capítulo
Neste capítulo estudaremos duas questões:
Indagaremos, primeiramente, se Jesus Cristo pensou em fundar uma Igreja: é a questão prévia;
No caso afirmativo, devemos provar historicamente quais são as características essenciais da Igreja fundada por Jesus. Daí, dois artigos. No primeiro, teremos como adversários os racionalistas, os protestantes liberais e os modernistas. No segundo, além desses adversários, teremos também os protestantes ortodoxos e os gregos cismáticos.
Art. I - Questão preliminar: Jesus pensou em fundar uma Igreja
Segundo os protestantes liberais e os modernistas, como Jesus tinha somente a missão de estabelecer o reino de Deus, não podia ter pensado em fundar a Igreja. O reino de Deus, como o concebem os nossos adversários, é incompatível com a noção católica de Igreja. O reino de Deus pregado por Jesus Cristo é, pois:
Para uns, um reino meramente espiritual;
Para outros, um reino somente escatológico.
Mostraremos que esses dois sistemas são uma interpretação incompleta e, por conseqüência, falsa, do pensamento e obra de Jesus Cristo.
§1º - O sistema do reino de Deus meramente interior. Refutação.
Exposição do sistema. Segundo Sebastier e Harnack, Jesus nunca pensou em fundar um Igreja, ou sociedade visível, mas limitou-se a pregar um reino de Deus interior e espiritual. A sua única preocupação foi o de fundar o reino de Deus na alma da cada fiel, operando nela uma renovação interior e inspirando-lhe para com Deus os sentimentos dum filho para com seu Pai.
Jesus encontrara, na geração de seu tempo, uma religião exclusivamente ritual e formalista. Não a proibiu expressamente, mas considerou como secundário esse aspecto externo da religião.
A grande novidade que pregou, o elemento original e propriamente seu, por assim dizer, a essência do cristianismo, é o lugar preponderante que atribui ao sentimento. Deste modo, o reino de Deus é íntimo e espiritual, destinado às necessidades da alma, sem imposição alguma de dogmas, instituições positivas e ritos meramente externos, deixando neste ponto completa liberdade ao modo de pensar individual.
Por conseguinte, a organização do cristianismo, como sociedade hierárquica, não entra no plano traçado pelo salvador; a Igreja visível é criação humana, cujas causas e origens pertencem ao domínio da história.
Refutação. Concedemos sem dificuldade aos nossos adversários que a essência da religião pregada por Cristo é sobretudo espiritual, que a maior inovação do cristianismo foi a renovação interior pela fé, pela caridade e pelo amor ao Pai, e que Jesus estabeleceu uma diferença essencial entre o farisaísmo daquele tempo e a nova religião. Não devemos porém exagerar, porque a espiritualidade do reino dos céus não é estranha ao conceito que dele faziam os profetas.
Todavia, temos de admitir, com Harnack, que o reino espiritual e interior foi exatamente a obra de Jesus; porque, como a voz dos profetas teve pouco eco, só Jesus conseguiu com sua autoridade, opor à justiça meramente externa e material do culto mosaico a justiça do novo reino, onde as virtudes interiores, como a humildade, a castidade, a caridade e o perdão das injúrias ocupam o primeiro lugar.
Mas, feitas essas observações, seguir-se-á, porventura, como pretende Harnack, que o reino de Deus, pregado e fundado por Jesus Cristo, é um reino meramente individual, uma sociedade invisível compostas das almas justas, sem nenhum caráter coletivo e social? Poder-se-á afirmar que a perfeição interior deve ser considerada como a essência do cristianismo, por ser ela só a obra de Cristo? De modo algum.
Há, neste modo de pensar, um sofisma desmascarado pelo próprio Loisy: “Não seria lógico", diz ele, "considerar como essência total duma religião o que a diferencia das outras. A fé monoteísta, por exemplo, é comum ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo, e contudo, e modo algum se deve procurar, fora da idéia monoteísta, a essência dessas três religiões. O judeu, o cristão e muçulmano admitem igualmente que a fé num só Deus é o primeiro e principal artigo de seu símbolo. É pelas suas diferenças que se estabelece o fim essencial de cada uma delas, mas não são somente as diferenças que constituem as religiões... Jesus não quis destruir a lei, mos cumpri-la. É pois natural que haja no judaísmo e no cristianismo elementos em comum, essenciais a ambos... A importância desses elementos não depende de sua antiguidade, nem da sua novidade, mas do lugar que ocupam na doutrina de Jesus Cristo e da importância que o próprio Jesus Cristo lhes dá” (Loisy, L´Évangile et l´Église, Introd. p. XVI e seg.).
Por outras palavras, o “reino de Deus” não e exclusivamente espiritual, só porque o Messias ensinou que era sobretudo espiritual. Tudo isso é evidente, se interpretarmos as palavras de Jesus Cristo, segundo as condições do meio e das idéias, em que foram proferidas.
Jesus insistia particularmente na idéia de perfeição interior e de renovação espiritual para corrigir os falsos conceitos dos judeus, que esperavam um reino temporal, por se terem fixado quase exclusivamente no elemento secundário das profecias. Queria persuadir-lhes que o reino de Deus que veio fundar não era reino temporal, nem o triunfo de uma nação sobre as outras, mas reino universal, para todos os povos, no qual poderia entrar todo homem de boa vontade pela prática das virtudes morais e interiores.
Essa mesma idéia se depreende principalmente das parábolas, que eram a maneira mais usada por Jesus Cristo para ensinar as verdades que desejava inculcar. Compara, por exemplo, o reino dos céus ao campo do pai de família onde nasceram e cresceram juntamente o bom grão e o joio (Mat. XIII, 24-30), a rede que pesca peixes bons e maus (Mat. XIII, 47). Ora, essas palavras não fariam sentido na hipótese de um reino meramente interior e espiritual.
Ademais, a expressão reino de Deus seria muito imprópria se devesse entender reino de Deus na alma individual; porque, nesse caso, não se trataria de um reino, mas de tantos reinos quantas as almas.
Os partidários desse sistema, para provar a sua tese, fundam-se no texto de Lucas (XVII, 20): Ecce regnum Dei intra vos est, que traduzem deste modo: “O reino de Deus está em vós”. Mas esta passagem tem outro sentido e, segundo o contexto, deve traduzir-se: “O reino de Deus está no meio de vós”. Os fariseus interrogam Jesus e perguntam-lhe quando virá o reino de Deus. Jesus responde: “O reino de Deus não virá com mostras algumas exteriores. Não dirão: ei-lo aqui, ou ei-lo acolá; porque eis aqui está o reino de Deus no meio de vós”. Como é fácil de ver, estas palavras no contexto não só não favorecem, mas parecem até ir contra a idéia de um reino meramente espiritual; porque, dirigindo-se essa resposta aos fariseus, que não criam e que, por conseguinte, se punham fora do reino, Jesus não lhes podia dizer que o reino estava em suas almas.
Portanto, o pensamento de Jesus é muito diverso daquele que nossos adversários atribuem. Conhecendo Jesus as falsas idéias dos seus contraditores, que julgavam que a vinda do reino e do Messias seria acompanhada de sinais portentosos, de prodígios extraordinários no céu, ensinava-lhes a maneira como o reino de Deus há de vir. Diz-lhes que não virá como uma coisa que impressiona a vista, como um astro, cujo curso se pode conhecer, porque o reino será principalmente espiritual e por isso não será objeto de observação. Além de que, ajunta Jesus, é inútil andar e procura-lo, porque já veio e está no meio de vós.
Conclusão. Da genuína interpretação do texto de S. Lucas e das razões que antes demos, pode coligir-se que o reino de Deus não é meramente espiritual, mas coletivo e social e que, por conseguinte, não se pode afirmar que Jesus Cristo nunca pensou em fundar uma Igreja visível.
§2º - O sistema de um reino meramente escatológico
Exposição do sistema. Segundo Loisy a fundação da Igreja nunca entrou nos planos do Salvador. Vejamos como o autor o demonstra.
Na época em que apareceu o Nosso Salvador, era idéia corrente entre o Judeus que o Messias havia de inaugurar o reino final e definitivo de Deus, isto é, o reino escatológico. Ora, analisando os textos dos Evangelhos, somente sobre o aspecto crítico e sem os deformar com interpretações teológicas, parece certo que Jesus compartilhava do erro de seus contemporâneos.
Por conseqüência, a sua pregação tinha dois fins:
Anunciar a vinda próxima do reino e o fim do mundo, intimamente conexos entre si; e
Preparar as almas para estes acontecimentos por meio da renuncia dos bens do mundo e da prática das virtudes morais para alcançar a justiça.
Portanto o Cristo da história não pôde sequer pensar em fundar uma Igreja, isto é, uma instituição estável.
Não se pode, por conseguinte, falar de instituição divina da Igreja; porque foram as circunstâncias e o fato de não se ter realizado o reino escatológico que levaram os discípulos a corrigir o plano do Mestre e a interpretar de outro modo as expressões que Jesus tinha dito de um mundo prestes a acabar, para acomoda-las ao mundo que continua a existir. Donde se pode concluir que Jesus Cristo anunciava o reino, e em vez dele apareceu a Igreja.
Posto que a Igreja não provenha da intenção e vontade de Jesus, contudo, continuam os modernistas, pode dizer-se que está relacionada com o Evangelho, por ser uma espécie de continuação da sociedade que Jesus tinha reunido em volta de si, em vista do reino que desejava fundar. Assim, a Igreja é, em certo modo, o resultado legítimo, ainda que inesperado, da pregação de Jesus, e pode dizer-se que é realmente continuação do Evangelho. Por outros termos; Jesus tinha reunido em volta de si alguns discípulos, aos quais confiou a missão de preparar o advento do reino próximo; mas, como os acontecimentos iludiam as esperanças dos apóstolos - porque o reino não chegava, - a pequena comunidade cresceu e deu origem a Igreja.
A Igreja pode, portanto, definir-se: a sociedade dos discípulos de Cristo, que, vendo que o reino escatológico não se realizava, se organizaram e adaptaram às condições atuais.
Se perguntarmos a Loisy que havemos de fazer dos textos que narram a fundação da Igreja, responder-nos-á, com os protestantes liberais, que não são históricos, pois “são palavra de Cristo glorificado” e, por conseguinte, interpretações ou maneiras de pensar dos primeiros cristãos. Em seguida, Loisy conclui que “a fundação da Igreja por Jesus Cristo ressuscitado não é, para o historiador, fato palpável” (Loisy, L´Évangile de l´Église).
Refutação. Jesus Cristo, tendo apenas o objetivo de preparar as almas para a vinda iminente do reino dos céus e para a sua “parúsia”, mão podia ter pensado em fundar uma sociedade estável: tal é a idéia mestra do sistema de Loisy. Ora, para provar esta tese seria necessário retalhar o texto evangélico sem motivo justificável, e fazer uma escolha inadmissível, ou uma interpretação fantasista das passagens referentes à Igreja, como vamos demonstrar.
Sujeitemos a exame cada uma das afirmações de Loisy. Primeiramente, será verdade que os contemporâneos de Jesus tinham somente a idéia de um reino de Deus escatológico? Como muito bem observou o P. Lagrange, em "Le Messianisme chez lês Juifs", podemos distinguir claramente na literatura daquele tempo duas manifestações do pensamento judeu: a dos apocalipses e a dos rabinos.
Ora, tanto uns como outros afirmavam que o reino messiânico não se identificava como o reino escatológico, e ambos se preocupavam com o porvir do reino de Israel neste mundo. A única diferença que havia entre eles é que os primeiros insistem mais no reino escatológico, e os segundos, no reino do mundo atual. Por conseguinte, se Jesus Cristo tivesse adotado as idéias dos apocalipses, pregaria somente um reino escatológico e corrigiria as idéias dos rabinos. Ora, Jesus não o fez.
Vemos claramente do exame imparcial dos Evangelhos que o Salvador descreve um reino que tem duas fazes sucessivas, uma terrestre a outra escatológica ou final. A primeira é apresentada por Jesus Cristo com características que não podem de modo algum aplicar-se ao reino escatológico e se adaptam perfeitamente à vida presente. Fala de um reino já fundado: “Desde os dias de João Batista até agora, o reino de Deus padece força, e os que fazem força são os que a arrebatam”, (Mat. XII, 12). Quando replica os fariseus, que o acusam de expulsar os demônios em nome de Belzebu, diz: “Se eu lanço fora os demônios pela virtude do Espírito de Deus, logo é chegado a vós o reino de Deus” (Mat. XII, 28).
Todavia, nas parábolas de Jesus aparece mais claramente a doutrina de Jesus. Nelas se descreve o reino de Deus como realidade já existente e concreta, que deve crescer e desenvolver-se (parábola do grão de mostarda, em Mat. XIII, 31-35; Marc. IV, 30-32), que tem no seu seio bons e maus (parábolas do joio e do trigo, Mat.XVII, 24-30; da rede que pesca peixes bons e maus, Mat. XIII, 47-50; das virgens prudentes a das virgens loucas, Mat. XXIV, 1-18).
Ora, essas qualidades não se podem aplicar ao reino escatológico, e só podem convir a um reino já fundado, suscetível de se adaptar e de aperfeiçoar, que sirva de preparação a outra forma de reino onde a escolha já está feita, no qual só o bom grão, os bons peixes e as virgens prudentes terão entrada e do qual o joio os peixes maus e as virgens loucas serão escolhidos.
Instância. Não teríamos dificuldade em admitir tudo isso, dizem os partidários do sistema escatológico, se os textos alagados para provar o reino de Deus neste mundo fossem autênticos. Mas não o são; porque foram intercalados pela primitiva geração cristã que, vendo que o reino escatológico não se realizava, procuraram harmonizar o pensamento e as palavras de Jesus com os fatos.
Todo crítico de boa fé reconhece as duas séries de textos, uma escatologia e outra não, e admite que são incompatíveis entre si. Devemos, pois, fazer a escolha dos dois textos das duas tradições e indagar qual a primitiva. Ora, tudo nos leva a crer que só a série escatológica representa o genuíno pensamento do Salvador, porque não podia ter sido inventada no momento em que os fatos a desmentiam. Logo, a segunda série é posterior ao Evangelho.
Resposta. A objeção modernista carece de fundamento sólido. As duas séries de textos não são novidade alguma para nós, e todos os católicos as admitem; mas daí não se pode concluir que se excluam mutuamente. Não haverá acaso meio algum de as conciliar? A dificuldade está exatamente neste ponto.
Se Jesus Cristo tivesse anunciado o fim do mundo e o reino escatológico, como um acontecimento iminente, haveria sem dúvida motivo para contradição entre as duas séries de textos, e Jesus não podia ser o autor da série não escatológica. Mas, será verdade que o Salvador afirme que o reino escatológico devia realizar-se em breve?
Posta a questão nestes termos, poderemos responder a priori que a conciliação é possível; porque é inadmissível que os Evangelistas, escrevendo os discursos do Senhor tantos anos depois, fossem tão ineptos que introduzissem textos que os vinham contradizer. Mas uma das duas: ou os Evangelistas são fidedignos ou não. Na primeira hipótese foram fiéis, e neste caso só teríamos uma série de textos. Na segunda hipótese, porque não suprimiram e série escatológica, visto que era desmentida pelos acontecimentos, deixando apenas a série não escatológica?
Será acaso verdade que a série escatológica só admite a interpretação modernista? A resposta levar-nos-ia à celebre profecia sobre o fim do mundo. É impossível que a redação tenha sido posterior aos acontecimentos, por causa do enredo dos fatos e da confusão que se nota nas narrações. Se os Evangelistas tivessem escrito depois da ruína de Jerusalém, teriam distinguido melhor, entre a ruína de Jerusalém e o fim do mundo, e indicado com maior clareza o fato de que davam os sinais precursores.
Ademais, o historiador Eusébio (Hist. Ecl. III, 5, 3) diz-nos que os cristãos da Judéia se lembraram da predição de Jesus quando viram aproximar-se os Romanos, e fugiram em grande número para Pela da Transjordânia, evitando assim os horrores da invasão. É inútil, portanto, insistir. Basta recordar que a frase de Jesus “esta geração não passará antes que todas estas coisas se cumpram" (Mat. XXIV, 34; Marc. XIII, 30; Luc. XXI. 32), invocada pelos adversários para provar que o Salvador cria no fim iminente do mundo, segundo o contexto, deve aplicar-se à ruína de Jerusalém e do povo judeu.
É certo que os Evangelistas não estabelecem distinção suficientemente clara entre as duas catástrofes a que as suas narrativas do fim do mundo e da ruína do templo são faltas de precisão. E é por esse motivo que muitos críticos julgaram que os apóstolos, levados pelas idéias do meio ambiente, se enganaram acerca do pensamento de Jesus.
Em qualquer hipótese não se pode admitir que Jesus cometesse o erro que lhe imputam os adversários; porque, é fora de dúvida, - cingindo-nos simplesmente aos dados da crítica literária, - que a catástrofe, cuja realização Jesus anunciava como iminente e à qual havia de assistir a geração de seu tempo, era a destruição de Jerusalém e do templo; porquanto, o tempo da segunda é considerado por Jesus como muito mais afastado, pois diz que “ninguém lhe sabe o dia nem a hora" (Mat. XXIV, 36).
Quanto às passagens que declaram iminente a vinda o Filho do homem sobre as nuvens do céu (Mat. XVI, 28; XXVI, 64; Marc. IX, 1; Luc. IX, 27; XXII, 69), podem entender-se da predição do admirável incremento que o reino messiânico teria em breve e do qual havia de ser testemunha a geração a que Nosso Senhor se dirigia. Assim interpretados esses textos, podemos dizer que se cumpriram à letra, visto que a difusão da religião cristã se operou com rapidez admirável.
Conclusão.
Da discussão precedente não é temeridade concluir que o sistema dum reino exclusivamente escatológico é tão inaceitável quanto o sistema dum reino meramente interior e espiritual. Portanto, Jesus tinha em vista a formação de uma Igreja como sociedade visível.
Fonte: Bibliografia: Tratados de filosofia; em particular o Manual de Filosofia de C. Lahr (Porto, Apostolado da Imprensa), e os de Fonsegrive, Jolivet e G. Sortais. - S. Tomás, Summa Teológica, De veritate. - Kleutgen, La philosophie scholastique (Gaume). - De Pascal, Le Christianisme, I. Part. La verité da la Religion (Lethielleux). - P. Julien Werquin, L´Évidence et la Science.
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