Art. II. - Jesus Cristo fundo uma Igreja. Caracteres essenciais
Estado da questão
Demonstramos que o reino de Deus pregado por Cristo inclui um período a que podemos chamar fase terrestre e preparatória do reino escatológico. Ora, esse reino compreende todos aqueles que admitem a doutrina ensinada por Jesus e, por conseguinte, é uma sociedade, a que damos o nome de Igreja.
Investiguemos agora a natureza dessa sociedade. Compõe-se porventura de membros iguais, ficando assim a interpretação da doutrina de Cristo ao arbítrio do juízo individual, ou está hierarquicamente constituída, isto é, composta de dois grupos distintos, um que ensina e governa, e outro que é ensinado e governado? Instituiu Jesus, por si mesmo, uma autoridade a qual confiou a missão de ensinar autoritativamente a sua doutrina? Numa palavra, o cristianismo, é “religião de espírito” ou “religião de autoridade”?
Os protestantes ortodoxos, que são os adversários neste ponto, sustentam a primeira hipótese, isto é, que Jesus não instituiu uma autoridade visível. As verdades de fé, os preceitos e os meios de santificação ficaram dependentes da apreciação subjetiva e individual, pois Jesus não estabeleceu intermediário algum obrigatório entre Deus e a consciência.
Se lhes perguntarmos porque motivo se agrupam e fazem reuniões, respondem simplesmente que é para orar em comum, para ler e comentar o Evangelho, para praticar os ritos do batismo e da ceia e para se edificaram mutuamente no amor de Deus e na caridade fraterna, mas nunca para obedecer uma autoridade constituída. Os protestantes procuram apoiar na história essa maneira de sentir. Veremos depois como explicam a instituição da hierarquia e as origens do catolicismo.
Contra essas afirmações demonstraremos que Jesus instituiu uma hierarquia permanente, - o colégio dos Doze e seus sucessores, - cujo chefe único é Pedro e os que lhe sucederem no cargo, e que a essa hierarquia outorgou a autoridade governativa dotada duma caução divina, da infalibilidade doutrinal.
Para melhor atingir o nosso intento, dividiremos as questões do seguinte modo:
Jesus conferindo aos apóstolos os três poderes de ensinar, reger e santificar, fundou uma hierarquia e por conseguinte, instituiu uma autoridade visível;
Esta hierarquia é permanente, visto que os três poderes dos apóstolos devem transmitir-se aos seus sucessores;
À frente da hierarquia colocou um chefe único (primado de Pedro e seus sucessores);
Finalmente, garantiu a integral conservação de sua doutrina, outorgando à Igreja docente o privilégio da infalibilidade.
Estes pontos constituirão outros tantos parágrafos.
§ 1º - Jesus Cristo fundou uma Igreja hierárquica
Estado da questão
Os protestantes ortodoxos, dissemos nós, não admitem que Jesus tenha posto à frente de sua Igreja uma autoridade visível. Entretanto, concedem a historicidade e até a inspiração dos textos evangélicos que os católicos alegam em favor de sua tese.
Os racionalistas, os protestantes liberais e os modernistas, pelo contrário, rejeitam a autenticidade desses textos, dizendo que foram redigidos posteriormente por autores desconhecidos e insertos na narração evangélica depois dos acontecimentos, quer dizer, no momento em que a instituição da Igreja hierárquica era um fato consumado.
A tese católica baseia-se, portanto, em dois argumentos:
Um, fundado nos textos evangélicos, que, com todo o direito, podemos utilizar contra os protestantes ortodoxos, e
Outro, históricos, em que nos propomos refutar a falsa concepção dos liberais e dos modernistas acerca da origem da Igreja hierárquica.
Argumento escriturístico - nota: Quando sustentamos que a possibilidade de encontrar a instituição divina de uma Igreja hierárquica nos textos evangélicos, não queremos afirmar que Jesus declarou explicitamente que fundava uma Igreja hierárquica para um dia ser governada pelos Bispos sob o primado do Papa; porque nunca pronunciou explicitamente estas palavras. Para demonstrarmos a nossa tese, basta provar que encontramos o equivalente no fato de ter escolhido os Doze apóstolos e de lhes ter conferido poderes especiais que não concedeu aos outros discípulos.
Escolha dos Doze. Todos os Evangelistas são concordes em testemunhar que Jesus escolheu doze entre os discípulos, a quem deu o nome de Apóstolos (Mat. X, 2-4; Marc. III, 13, 19; Luc. VI, 13, 16; João, I, 35 e segs.). Instituiu-os de uma maneira particular, desvendou-lhes o sentido das parábolas que as turbas não compreendiam (Mat. XIII, 11) e associou-os à sua obra mandando-lhes que pregassem o reino de Deus aos filhos de Israel (Mat. X, 5, 42; Marc. VI, 7, 13; Luc. IX, 1, 6).
Poderes conferidos ao colégio dos Doze.
Ao colégio dos Doze, - a Pedro em particular (Mat. XVI, 18s), e a todo o colégio apostólico (Mat. XVIII, 18), - Jesus primeiro prometeu "o poder de ligar no céu o que eles ligassem na terra”, isto é, uma autoridade governativa que os constituiria juízes nos casos de consciência e lhes comunicaria a faculdade de preceituar ou proibir e, portanto, de obrigar; de modo que todo aquele que não obedecesse a Igreja seria considerado “como um pagão ou publicano” (Mat. XVIII, 17).
Mas, objetam os protestantes a propósito do último texto, a palavra Igreja no versículo 17 é tomada no sentido restrito de assembléia, e por isso não pode servir de argumento em favor duma autoridade hierárquica. Bem, palavra Igreja pode prestar-se a duas interpretações. Segundo as regras a hermenêutica, porém, todo texto obscuro deve ser interpretado conforme os lugares paralelos mais claros. Ora, não há dúvida que nos outros textos, que tratam dos poderes concedidos por Nosso Senhor à sua Igreja, esta concessão estende-se somente ao colégio apostólico. Portanto, devemos atribuir o mesmo sentido ao texto de Mateus.
Poucos dias antes da Ascensão, Jesus conferiu aos doze apóstolos o poder que antes ele tinha prometido: “Todo poder me foi dado no céu e na terra; ide, pois, e ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que eu vos tenho ordenado, e estai certos de que eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos" (Mat. XXVIII, 19, 20).
Deste modo, Jesus comunicou aos apóstolos o poder:
De ensinar: “Ide e ensinai todos os povos”;
De santificar, pelos ritos instituídos para esse fim e, em particular pelo batismo;
De governar, uma vez que os apóstolos ao de ensinar o mundo a observar tudo o que Jesus mandou.
Objetam os racionalistas que esta passagem não tem valor algum, sob pretexto que as palavras e ações de Cristo ressuscitado não podem ser comprovadas pelo historiador.
É evidente o preconceito racionalista. Se a Ressurreição pode demonstrar-se como fato histórico e como uma realidade de que os apóstolos alcançaram a certeza, o propósito de rejeitar as palavras de Cristo ressuscitado, atinge a própria ressurreição. Além de que, as palavras de Cristo ressuscitado estão de tal modo conexas com as palavras da promessa que impugnar umas é o mesmo que impugnar as outras, e negar umas é tornar inexplicável o procedimento dos apóstolos, que após a morte do seu mestre reivindicaram os três poderes mencionados.
Argumento histórico - preliminares:
A questão da instituição divina de uma Igreja hierárquica é sobretudo histórica; porque se a história nos mostrasse que a fundação da Igreja foi posterior aos tempos apostólica e obra somente circunstâncias acidentais, em vão alegaríamos argumentos escriturísticos, pois os adversários teriam o direito de considerar os textos evangélicos como interpolações.
Os documentos, que servem de fundamento ao estudo do cristianismo nascente, são os Atos dos Apóstolos e as Epístolas de S. Paulo; para o período pós-apostólico (isto é, para as três gerações que se seguem aos apóstolos), as obras dos Padres e dos escritores eclesiásticos.
Os Atos dos Apóstolos: S. Lucas, segundo a tradição universal e constante, é o autor dos Atos dos Apóstolos. Esta tradição funda-se:
Num argumento extrínseco (testemunhos de S. Ireneu, do cânon de Muratori, de Clemente de Alexandria), e
Num argumento intrínseco, pois da análise da obra concluiu-se que o autor era médico e companheiro de S. Paulo e que os Atos apresentam as mesmas particularidades de linguagem e composição que o terceiro Evangelho.
Como o livro termina com a primeira prisão de Paulo em Roma, é provável que tenha sido composto depois de ter saído do cárcere e antes da morte de S. Paulo (67). Os Atos são, pois, para o historiador dos primeiros tempos do cristianismo, um dos mais preciosos documentos.
O autor refere os fatos, já como testemunha ocular, já conforme a narração de testemunhos oculares: Paulo, Barnabé, Filipe e Marcos. A precisão e os pormenores circunstanciados com que são narrados afastam qualquer possibilidade de lenda ou de amplificações tendenciosas. Quanto aos discursos que contém, foram sem dúvida colhidos de fontes escritas, como parece indicar os numerosos aramaísmos que nele se encontram. Por outro lado, a sinceridade de S. Lucas não é suspeita, e os críticos racionalistas só põe de parte o que se opõe à sua tese, isto é, os milagres e alguns discursos por causa de seu alcance doutrinal.
A importância dos Atos é manifesta por conterem uma exposição completa da primeira pregação dos apóstolos e por nos manifestarem a organização da Igreja primitiva.
As Epístolas de S. Paulo são também para o apologista fontes de grande importância tanto pela sua antiguidade, como pelo valor documentário.
Podem agrupar-se em quatro séries segundo a data de composição:
1.a série: Ep. I e II aos Tessalonicenses (ano de 51);
2.a série: As Epístolas maiores, I e II aos Coríntios, aos Gálatas e aos Romanos (56, 57);
3.a série: As Epístolas escritas na prisão aos Filipenses, aos Efésios, aos Colossenses e a Filémon (61,62);
4.a série: As Epístolas pastorais I e II a Timóteo e a Tito (62).
A autenticidade das três primeiras séries é admitida pelos próprios racionalistas.
Em muitos lugares dos Atos dos Apóstolos fala-se de “carismas”. Carismas (grego “charis” e “charisma”, graça, dom, favor) são dons sobrenaturais concedidos pelo Espírito Santo para a propagação do cristianismo e para o bem geral da Igreja nascente. São manifestações extraordinárias do Espírito Santo e por vezes desordenadas, como o dom das línguas ou glossolalia, que consistia em louvar a Deus numa língua estranha e com ares de exaltação e entusiasmo (leia-se a este propósito I Cor. XIV). Os carismas mais apreciados era o dom dos milagres e o das profecias; mas todos eles eram sempre sinais divinos que tinham por fim confirmar a primeira pregação do Evangelho.
Exporemos, sem sair do campo da história, as duas tese, racionalista e católica, acerca da origem da Igreja. A primeira, a que damos o título geral da racionalista, é também defendida pelos historiadores protestantes, ortodoxos ou liberais e pelos modernistas. Damos aqui um resumo, o mais objetivo possível, da exposição feita por A. Sabatier ("Les Religions d´autorité et la Religion de l´espirit", pág. 47-83, 4.ª edição) que é melhor que existe em francês.
A tese racionalista - Origem da Igreja
A fundação duma Igreja hierárquica não podia ter sido obra de Jesus. “Nem a quis nem a podia prever, porque pensava que a sua vinda coincidiria com o fim do mundo; portanto, o desenvolvimento histórico do cristianismo estava fora do âmbito da sua missão messiânica”.
Como os apóstolos “estavam sempre à espera da volta triunfante de Jesus sobre as nuvens do céu”, viviam “numa exaltação febril”, considerando-se como estrangeiros e peregrinos, que "passam sem se preocupar com uma fundação perdurável”.
As primeiras comunidades de discípulos de Cristo não formavam, portanto, uma sociedade hierárquica. “Os dons individuais (carismas) eram concedidos pelo Espírito Santo a diversos membros da comunidade cristã, consoante as necessidades. Era o Espírito Santo que, operando em cada indivíduo, determinava as vocações e conferia aos fiéis, conforme a sua capacidade ou zelo, ministérios e ofícios provisórios”.
As primeiras comunidades cristãs, compostas ao princípio “de membros iguais entre si, distintos somente pela variedade dos dons do Espírito”, tornaram-se com o tempo “corpos organizados, igrejas verdadeiras, que se desenvolveram, tomando fisionomias diferentes, segundo a diversidade dos meios geográficos e sociais. As assembléias dos cristãos na Palestina e na Transjordânia imitam as sinagogas dos judeus... No Ocidente tomam a fisionomia dos colégios, ou associações pagãs, muito numerosas nessa época nas cidades gregas. Todavia, as associações cristãs dispersas pelo império mantém entre si relações freqüentes... É pois natural que tenham tido desde o começo consciência nítida da sua unidade espiritual e que tenha surgido nas casas do Apóstolo da gentes a idéia da Igreja de Deus, - ou de Cristo, - una e universal, acima das igrejas particulares e locais... A unidade ideal da Igreja tenderá a tornar-se uma realidade visível, pela unidade de governo, de culto e de disciplina”.
Pra se operar essa unidade “faltam ainda duas condições necessárias. Primeiramente é preciso que as cristandades particulares encontrem um centro fixo, à volta do qual se reúnam. Em segundo lugar importa que se estabeleçam uma regra dogmática e um princípio de autoridade com que possam vencer todas as heresias e todas as resistências”. Essas duas condições efetuaram-se do seguinte modo: Após a destruição de Jerusalém “a cristandade greco-romana buscou um novo centro à volta do qual se pudessem agrupar. As hesitações não podiam ser longas. As Igrejas de Antioquia, Éfeso e Alexandria, as mais importantes dos tempos apostólicos, eram mais ou menos iguais na autoridade que exerciam nas comunidades das respectivas regiões. Mas havia uma cidade que sobressaia sobre todas as demais e que tinha importância universal. Era Roma, e cidade eterna e sagrada... A capital do império estava, portanto, indicada de antemão para capital da cristandade”. Está realizada a primeira condição: o centro fixo, princípio da unidade hierárquica.
Numerosas seitas, entre outras, as grandes heresias do gnosticismo e do montanismo, que apareceram respectivamente pelos anos 130 e 160, realizaram a segunda condição; porque “procurou-se e descobriu-se o meio de opor a todas a objeções uma espécie de declinatório, ou questão prévia, mais eficaz do que a refutação das heresias, porque as executava logo ao nascer. Esse meio consistia na profissão de fé apostólica, num símbolo universal e popular, que constituído como lei na Igreja, excluía do seu seio, sem discussão nenhuma, todos aqueles que se recusavam a aceitá-lo. Foi esta a “regra de fé”, a que se chamou símbolo dos apóstolos, redigido pela primeira vez na Igreja de Roma, entre os anos de 150 e 160”. A partir deste momento ficou fundado o catolicismo dotado de governo episcopal e da regra de fé externa.
Resumindo: o cristianismo, no começo, era uma “religião de espírito”, tendo como única regra de fé os carismas, isto é, as inspirações individuais do Espírito Santo. Não tinha hierarquia nem sociedade visível. Não era independente das sociedades judaicas, nem das sociedades pagãs, e só conseguiu ser religião de autoridade, com hierarquia própria, 120 ou 150 anos depois de Jesus Cristo, cerca dos fins do século II, no tempo de S. Ireneu e do papa S. Vitor. Entre a morte de Jesus e a constituição católica da Igreja, há um período intermediário, em que não existiam organizações de qualquer espécie e que pode designar-se com o nome de época pré-católica do cristianismo. Daí se segue que a Igreja Católica não é de instituição divina. A fundação, o desenvolvimento e as vicissitudes de sua história explicam-se plenamente pelo concurso de circunstâncias humanas. Só depois da Igreja estabelecer a sua infalibilidade... procurou justificar teoricamente o que já tinha se realizado na prática. O dogma só consagrou o que passara à prática no primeiro ou nos dois primeiros séculos.
Tese católica - Nota. Antes de discutirmos a tese racionalista, convém observar, para evitar equívocos, que os historiadores católicos não pretendem de modo algum encontrar no começo do cristianismo uma organização tão perfeita como a que mais tarde adquiriu. Seria desejar que a semente, logo depois de lançada à terra, produzisse frutos sem passar pelas várias fases da germinação.
Os racionalistas concedem que no começo do século III, e mesmo nos fins do século II, a Igreja possuía já uma hierarquia e tinha um centro de unidade e um símbolo de fé. A nossa investigação terminará, portanto, nessa época e mostrará que o fruto sazonado, encontrado pelos historiadores e racionalistas nos fins do século II, é efeito do desenvolvimento normal da semente lançada à terra nos primeiros anos do cristianismo.
Falando sem metáforas, demonstraremos que não existiu o suposto período pré-católico, que os órgãos essenciais do cristianismo posterior estavam contidos no cristianismo dos tempos apostólicos. Antes, porém, examinaremos um por um todos os artigos da tese racionalista.
Refutação da tese racionalista
O que os nossos adversários afirmam a respeito das intenções de Jesus, isto é, que não podia ter pensado em fundar uma Igreja por esta se encontrar fora do plano da sua missão messiânica, é um preconceito já refutado que não abordaremos novamente.
Será certo - como levianamente se afirma - que os apóstolos, iludidos pela pregação de Jesus e esperando a próxima vinda do reino escatológico, também não puderam pensar na organização de uma instituição durável? Se assim fosse, se os apóstolos e os primeiros cristãos estivessem verdadeiramente convencidos que Jesus Cristo lhes tinha anunciado a vinda próxima dum reino escatológico, porque é que a comunidade cristã não se dissolveu quando viu que tinha sido enganado por Jesus? Este raciocínio é tão claro que os próprios historiadores liberais, como Harnack, reconhecem que o Evangelho era alguma coisa mais do que isso, alguma coisa nova, a saber, “a criação de uma religião universal fundada na religião do Antigo Testamento”.
Dizer que se devem aos carismas os primeiros elementos da organização da Igreja, é também uma hipótese destituída de fundamento. É evidente - como o prova a experiência quotidiana - que a inspiração individual conduz quase sempre à anarquia. É o próprio Renan que o confessa no seu Marc Aurèle: “A profecia livre, os carismas, a glossolalia e a inspiração individual eram causas mais que suficiente para reduzir o cristianismo às proporções de uma seita efêmera, como vemos na América e na Inglaterra”.
Também não é conforme à verdade afirmar que as primeiras comunidades cristãs não possuíam autonomia alguma, que não se distinguiam das sinagogas ou das escolas pagãs. Concedemos que, para suavizar as transições, se tinham feito mútuas concessões nalguns pontos secundários - as comunidades compostas exclusivamente de judeus convertidos foram autorizadas a conservar a circuncisão, ao passo que os pagãos eram admitidos ao batismo sem passar pelo judaísmo - mas propugnamos desassombradamente que o catolicismo apareceu, desde o primeiro dia, como uma religião completamente distinta da mosaica, porque os apóstolos reconheciam-se investidos de uma missão religiosa universal, que não receberam dos chefes do judaísmo.
Portanto, a idéia da Igreja única e universal não é particular de S. Paulo, posto que ocupe lugar preponderante no seu ensinamento. Essa idéia provém de os apóstolos terem sido discípulos do mesmo mestre, que a todos ensinou as mesmas verdades. Se as diversas igrejas do mundo só formam uma Igreja é porque são todas filhas da mesma comunidade primitiva, da Igreja Mãe de Jerusalém, que por toda parte pregou sempre a mesma fé.
É falsidade dizer que a ruína de Jerusalém fez deslocar o centro de gravidade do cristianismo, porque já no tempo das missões de S. Paulo e, por conseguinte, muitos anos antes da ruína de Jerusalém (ano 70), as comunidades cristãs tinham abandonado o judeo-cristianismo e já estavam desligadas da capital de Judéia. É natural que Roma tenha sido escolhido para centro da cristandade, por ser a capital do Império greco-romano; “mas fazemos certas reservas", diz Mons. Batiffol, "quanto aos termos políticos que se empregam para descrever a cooperação de Roma e também quanto à tendência de consideram como causa o que é apenas circunstância” (Batiffol, "L´Église naissante et le catholicisme").
Não se pode atribuir a influência atribuída ao Símbolo dos Apóstolos na criação da unidade da Igreja e da reação contra as heresias nascentes; porque, não é provável que tenha sido imposto às igrejas gregas o texto romano, que era a profissão de fé batismal comum a Roma e às igrejas da Gália e da África no tempo de S. Ireneu e mesmo antes dessa época. É até provável que estas não tenham possuído nenhum formulário comum da sua fé antes do Concílio de Nicéia (325). Não se pode, portanto, sustentar que o Símbolo romano tenha sido a causa da unidade.
Supõe os racionalistas que o Símbolo dos Apóstolos foi redigido por ocasião das heresias nascentes, mormente no gnosticismo e no montanismo. Ora, nessa fórmula não aparece indício algum anti-gnóstico, e os artigos encontram-se equivalentemente nos escritos anteriores à heresia gnóstica, por exemplo, entre os apologistas, como S. Justino (150), Aristides (140) e S. Inácio (110). Pode dizer-se até que, ao menos na substância, já fazem parte da literatura cristã da idade apostólica.
O Símbolo romano, com maior razão ainda, é independente do montanismo, porque este é muito posterior e só penetrou no mundo cristão do ocidente depois do ano 180, data em que, segundo o parecer dos próprios adversários, já estava redigido o Símbolo.
Fonte: Bibliografia: Tratados de filosofia; em particular o Manual de Filosofia de C. Lahr (Porto, Apostolado da Imprensa), e os de Fonsegrive, Jolivet e G. Sortais. - S. Tomás, Summa Teológica, De veritate. - Kleutgen, La philosophie scholastique (Gaume). - De Pascal, Le Christianisme, I. Part. La verité da la Religion (Lethielleux). - P. Julien Werquin, L´Évidence et la Science.
Estado da questão
Demonstramos que o reino de Deus pregado por Cristo inclui um período a que podemos chamar fase terrestre e preparatória do reino escatológico. Ora, esse reino compreende todos aqueles que admitem a doutrina ensinada por Jesus e, por conseguinte, é uma sociedade, a que damos o nome de Igreja.
Investiguemos agora a natureza dessa sociedade. Compõe-se porventura de membros iguais, ficando assim a interpretação da doutrina de Cristo ao arbítrio do juízo individual, ou está hierarquicamente constituída, isto é, composta de dois grupos distintos, um que ensina e governa, e outro que é ensinado e governado? Instituiu Jesus, por si mesmo, uma autoridade a qual confiou a missão de ensinar autoritativamente a sua doutrina? Numa palavra, o cristianismo, é “religião de espírito” ou “religião de autoridade”?
Os protestantes ortodoxos, que são os adversários neste ponto, sustentam a primeira hipótese, isto é, que Jesus não instituiu uma autoridade visível. As verdades de fé, os preceitos e os meios de santificação ficaram dependentes da apreciação subjetiva e individual, pois Jesus não estabeleceu intermediário algum obrigatório entre Deus e a consciência.
Se lhes perguntarmos porque motivo se agrupam e fazem reuniões, respondem simplesmente que é para orar em comum, para ler e comentar o Evangelho, para praticar os ritos do batismo e da ceia e para se edificaram mutuamente no amor de Deus e na caridade fraterna, mas nunca para obedecer uma autoridade constituída. Os protestantes procuram apoiar na história essa maneira de sentir. Veremos depois como explicam a instituição da hierarquia e as origens do catolicismo.
Contra essas afirmações demonstraremos que Jesus instituiu uma hierarquia permanente, - o colégio dos Doze e seus sucessores, - cujo chefe único é Pedro e os que lhe sucederem no cargo, e que a essa hierarquia outorgou a autoridade governativa dotada duma caução divina, da infalibilidade doutrinal.
Para melhor atingir o nosso intento, dividiremos as questões do seguinte modo:
Jesus conferindo aos apóstolos os três poderes de ensinar, reger e santificar, fundou uma hierarquia e por conseguinte, instituiu uma autoridade visível;
Esta hierarquia é permanente, visto que os três poderes dos apóstolos devem transmitir-se aos seus sucessores;
À frente da hierarquia colocou um chefe único (primado de Pedro e seus sucessores);
Finalmente, garantiu a integral conservação de sua doutrina, outorgando à Igreja docente o privilégio da infalibilidade.
Estes pontos constituirão outros tantos parágrafos.
§ 1º - Jesus Cristo fundou uma Igreja hierárquica
Estado da questão
Os protestantes ortodoxos, dissemos nós, não admitem que Jesus tenha posto à frente de sua Igreja uma autoridade visível. Entretanto, concedem a historicidade e até a inspiração dos textos evangélicos que os católicos alegam em favor de sua tese.
Os racionalistas, os protestantes liberais e os modernistas, pelo contrário, rejeitam a autenticidade desses textos, dizendo que foram redigidos posteriormente por autores desconhecidos e insertos na narração evangélica depois dos acontecimentos, quer dizer, no momento em que a instituição da Igreja hierárquica era um fato consumado.
A tese católica baseia-se, portanto, em dois argumentos:
Um, fundado nos textos evangélicos, que, com todo o direito, podemos utilizar contra os protestantes ortodoxos, e
Outro, históricos, em que nos propomos refutar a falsa concepção dos liberais e dos modernistas acerca da origem da Igreja hierárquica.
Argumento escriturístico - nota: Quando sustentamos que a possibilidade de encontrar a instituição divina de uma Igreja hierárquica nos textos evangélicos, não queremos afirmar que Jesus declarou explicitamente que fundava uma Igreja hierárquica para um dia ser governada pelos Bispos sob o primado do Papa; porque nunca pronunciou explicitamente estas palavras. Para demonstrarmos a nossa tese, basta provar que encontramos o equivalente no fato de ter escolhido os Doze apóstolos e de lhes ter conferido poderes especiais que não concedeu aos outros discípulos.
Escolha dos Doze. Todos os Evangelistas são concordes em testemunhar que Jesus escolheu doze entre os discípulos, a quem deu o nome de Apóstolos (Mat. X, 2-4; Marc. III, 13, 19; Luc. VI, 13, 16; João, I, 35 e segs.). Instituiu-os de uma maneira particular, desvendou-lhes o sentido das parábolas que as turbas não compreendiam (Mat. XIII, 11) e associou-os à sua obra mandando-lhes que pregassem o reino de Deus aos filhos de Israel (Mat. X, 5, 42; Marc. VI, 7, 13; Luc. IX, 1, 6).
Poderes conferidos ao colégio dos Doze.
Ao colégio dos Doze, - a Pedro em particular (Mat. XVI, 18s), e a todo o colégio apostólico (Mat. XVIII, 18), - Jesus primeiro prometeu "o poder de ligar no céu o que eles ligassem na terra”, isto é, uma autoridade governativa que os constituiria juízes nos casos de consciência e lhes comunicaria a faculdade de preceituar ou proibir e, portanto, de obrigar; de modo que todo aquele que não obedecesse a Igreja seria considerado “como um pagão ou publicano” (Mat. XVIII, 17).
Mas, objetam os protestantes a propósito do último texto, a palavra Igreja no versículo 17 é tomada no sentido restrito de assembléia, e por isso não pode servir de argumento em favor duma autoridade hierárquica. Bem, palavra Igreja pode prestar-se a duas interpretações. Segundo as regras a hermenêutica, porém, todo texto obscuro deve ser interpretado conforme os lugares paralelos mais claros. Ora, não há dúvida que nos outros textos, que tratam dos poderes concedidos por Nosso Senhor à sua Igreja, esta concessão estende-se somente ao colégio apostólico. Portanto, devemos atribuir o mesmo sentido ao texto de Mateus.
Poucos dias antes da Ascensão, Jesus conferiu aos doze apóstolos o poder que antes ele tinha prometido: “Todo poder me foi dado no céu e na terra; ide, pois, e ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que eu vos tenho ordenado, e estai certos de que eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos" (Mat. XXVIII, 19, 20).
Deste modo, Jesus comunicou aos apóstolos o poder:
De ensinar: “Ide e ensinai todos os povos”;
De santificar, pelos ritos instituídos para esse fim e, em particular pelo batismo;
De governar, uma vez que os apóstolos ao de ensinar o mundo a observar tudo o que Jesus mandou.
Objetam os racionalistas que esta passagem não tem valor algum, sob pretexto que as palavras e ações de Cristo ressuscitado não podem ser comprovadas pelo historiador.
É evidente o preconceito racionalista. Se a Ressurreição pode demonstrar-se como fato histórico e como uma realidade de que os apóstolos alcançaram a certeza, o propósito de rejeitar as palavras de Cristo ressuscitado, atinge a própria ressurreição. Além de que, as palavras de Cristo ressuscitado estão de tal modo conexas com as palavras da promessa que impugnar umas é o mesmo que impugnar as outras, e negar umas é tornar inexplicável o procedimento dos apóstolos, que após a morte do seu mestre reivindicaram os três poderes mencionados.
Argumento histórico - preliminares:
A questão da instituição divina de uma Igreja hierárquica é sobretudo histórica; porque se a história nos mostrasse que a fundação da Igreja foi posterior aos tempos apostólica e obra somente circunstâncias acidentais, em vão alegaríamos argumentos escriturísticos, pois os adversários teriam o direito de considerar os textos evangélicos como interpolações.
Os documentos, que servem de fundamento ao estudo do cristianismo nascente, são os Atos dos Apóstolos e as Epístolas de S. Paulo; para o período pós-apostólico (isto é, para as três gerações que se seguem aos apóstolos), as obras dos Padres e dos escritores eclesiásticos.
Os Atos dos Apóstolos: S. Lucas, segundo a tradição universal e constante, é o autor dos Atos dos Apóstolos. Esta tradição funda-se:
Num argumento extrínseco (testemunhos de S. Ireneu, do cânon de Muratori, de Clemente de Alexandria), e
Num argumento intrínseco, pois da análise da obra concluiu-se que o autor era médico e companheiro de S. Paulo e que os Atos apresentam as mesmas particularidades de linguagem e composição que o terceiro Evangelho.
Como o livro termina com a primeira prisão de Paulo em Roma, é provável que tenha sido composto depois de ter saído do cárcere e antes da morte de S. Paulo (67). Os Atos são, pois, para o historiador dos primeiros tempos do cristianismo, um dos mais preciosos documentos.
O autor refere os fatos, já como testemunha ocular, já conforme a narração de testemunhos oculares: Paulo, Barnabé, Filipe e Marcos. A precisão e os pormenores circunstanciados com que são narrados afastam qualquer possibilidade de lenda ou de amplificações tendenciosas. Quanto aos discursos que contém, foram sem dúvida colhidos de fontes escritas, como parece indicar os numerosos aramaísmos que nele se encontram. Por outro lado, a sinceridade de S. Lucas não é suspeita, e os críticos racionalistas só põe de parte o que se opõe à sua tese, isto é, os milagres e alguns discursos por causa de seu alcance doutrinal.
A importância dos Atos é manifesta por conterem uma exposição completa da primeira pregação dos apóstolos e por nos manifestarem a organização da Igreja primitiva.
As Epístolas de S. Paulo são também para o apologista fontes de grande importância tanto pela sua antiguidade, como pelo valor documentário.
Podem agrupar-se em quatro séries segundo a data de composição:
1.a série: Ep. I e II aos Tessalonicenses (ano de 51);
2.a série: As Epístolas maiores, I e II aos Coríntios, aos Gálatas e aos Romanos (56, 57);
3.a série: As Epístolas escritas na prisão aos Filipenses, aos Efésios, aos Colossenses e a Filémon (61,62);
4.a série: As Epístolas pastorais I e II a Timóteo e a Tito (62).
A autenticidade das três primeiras séries é admitida pelos próprios racionalistas.
Em muitos lugares dos Atos dos Apóstolos fala-se de “carismas”. Carismas (grego “charis” e “charisma”, graça, dom, favor) são dons sobrenaturais concedidos pelo Espírito Santo para a propagação do cristianismo e para o bem geral da Igreja nascente. São manifestações extraordinárias do Espírito Santo e por vezes desordenadas, como o dom das línguas ou glossolalia, que consistia em louvar a Deus numa língua estranha e com ares de exaltação e entusiasmo (leia-se a este propósito I Cor. XIV). Os carismas mais apreciados era o dom dos milagres e o das profecias; mas todos eles eram sempre sinais divinos que tinham por fim confirmar a primeira pregação do Evangelho.
Exporemos, sem sair do campo da história, as duas tese, racionalista e católica, acerca da origem da Igreja. A primeira, a que damos o título geral da racionalista, é também defendida pelos historiadores protestantes, ortodoxos ou liberais e pelos modernistas. Damos aqui um resumo, o mais objetivo possível, da exposição feita por A. Sabatier ("Les Religions d´autorité et la Religion de l´espirit", pág. 47-83, 4.ª edição) que é melhor que existe em francês.
A tese racionalista - Origem da Igreja
A fundação duma Igreja hierárquica não podia ter sido obra de Jesus. “Nem a quis nem a podia prever, porque pensava que a sua vinda coincidiria com o fim do mundo; portanto, o desenvolvimento histórico do cristianismo estava fora do âmbito da sua missão messiânica”.
Como os apóstolos “estavam sempre à espera da volta triunfante de Jesus sobre as nuvens do céu”, viviam “numa exaltação febril”, considerando-se como estrangeiros e peregrinos, que "passam sem se preocupar com uma fundação perdurável”.
As primeiras comunidades de discípulos de Cristo não formavam, portanto, uma sociedade hierárquica. “Os dons individuais (carismas) eram concedidos pelo Espírito Santo a diversos membros da comunidade cristã, consoante as necessidades. Era o Espírito Santo que, operando em cada indivíduo, determinava as vocações e conferia aos fiéis, conforme a sua capacidade ou zelo, ministérios e ofícios provisórios”.
As primeiras comunidades cristãs, compostas ao princípio “de membros iguais entre si, distintos somente pela variedade dos dons do Espírito”, tornaram-se com o tempo “corpos organizados, igrejas verdadeiras, que se desenvolveram, tomando fisionomias diferentes, segundo a diversidade dos meios geográficos e sociais. As assembléias dos cristãos na Palestina e na Transjordânia imitam as sinagogas dos judeus... No Ocidente tomam a fisionomia dos colégios, ou associações pagãs, muito numerosas nessa época nas cidades gregas. Todavia, as associações cristãs dispersas pelo império mantém entre si relações freqüentes... É pois natural que tenham tido desde o começo consciência nítida da sua unidade espiritual e que tenha surgido nas casas do Apóstolo da gentes a idéia da Igreja de Deus, - ou de Cristo, - una e universal, acima das igrejas particulares e locais... A unidade ideal da Igreja tenderá a tornar-se uma realidade visível, pela unidade de governo, de culto e de disciplina”.
Pra se operar essa unidade “faltam ainda duas condições necessárias. Primeiramente é preciso que as cristandades particulares encontrem um centro fixo, à volta do qual se reúnam. Em segundo lugar importa que se estabeleçam uma regra dogmática e um princípio de autoridade com que possam vencer todas as heresias e todas as resistências”. Essas duas condições efetuaram-se do seguinte modo: Após a destruição de Jerusalém “a cristandade greco-romana buscou um novo centro à volta do qual se pudessem agrupar. As hesitações não podiam ser longas. As Igrejas de Antioquia, Éfeso e Alexandria, as mais importantes dos tempos apostólicos, eram mais ou menos iguais na autoridade que exerciam nas comunidades das respectivas regiões. Mas havia uma cidade que sobressaia sobre todas as demais e que tinha importância universal. Era Roma, e cidade eterna e sagrada... A capital do império estava, portanto, indicada de antemão para capital da cristandade”. Está realizada a primeira condição: o centro fixo, princípio da unidade hierárquica.
Numerosas seitas, entre outras, as grandes heresias do gnosticismo e do montanismo, que apareceram respectivamente pelos anos 130 e 160, realizaram a segunda condição; porque “procurou-se e descobriu-se o meio de opor a todas a objeções uma espécie de declinatório, ou questão prévia, mais eficaz do que a refutação das heresias, porque as executava logo ao nascer. Esse meio consistia na profissão de fé apostólica, num símbolo universal e popular, que constituído como lei na Igreja, excluía do seu seio, sem discussão nenhuma, todos aqueles que se recusavam a aceitá-lo. Foi esta a “regra de fé”, a que se chamou símbolo dos apóstolos, redigido pela primeira vez na Igreja de Roma, entre os anos de 150 e 160”. A partir deste momento ficou fundado o catolicismo dotado de governo episcopal e da regra de fé externa.
Resumindo: o cristianismo, no começo, era uma “religião de espírito”, tendo como única regra de fé os carismas, isto é, as inspirações individuais do Espírito Santo. Não tinha hierarquia nem sociedade visível. Não era independente das sociedades judaicas, nem das sociedades pagãs, e só conseguiu ser religião de autoridade, com hierarquia própria, 120 ou 150 anos depois de Jesus Cristo, cerca dos fins do século II, no tempo de S. Ireneu e do papa S. Vitor. Entre a morte de Jesus e a constituição católica da Igreja, há um período intermediário, em que não existiam organizações de qualquer espécie e que pode designar-se com o nome de época pré-católica do cristianismo. Daí se segue que a Igreja Católica não é de instituição divina. A fundação, o desenvolvimento e as vicissitudes de sua história explicam-se plenamente pelo concurso de circunstâncias humanas. Só depois da Igreja estabelecer a sua infalibilidade... procurou justificar teoricamente o que já tinha se realizado na prática. O dogma só consagrou o que passara à prática no primeiro ou nos dois primeiros séculos.
Tese católica - Nota. Antes de discutirmos a tese racionalista, convém observar, para evitar equívocos, que os historiadores católicos não pretendem de modo algum encontrar no começo do cristianismo uma organização tão perfeita como a que mais tarde adquiriu. Seria desejar que a semente, logo depois de lançada à terra, produzisse frutos sem passar pelas várias fases da germinação.
Os racionalistas concedem que no começo do século III, e mesmo nos fins do século II, a Igreja possuía já uma hierarquia e tinha um centro de unidade e um símbolo de fé. A nossa investigação terminará, portanto, nessa época e mostrará que o fruto sazonado, encontrado pelos historiadores e racionalistas nos fins do século II, é efeito do desenvolvimento normal da semente lançada à terra nos primeiros anos do cristianismo.
Falando sem metáforas, demonstraremos que não existiu o suposto período pré-católico, que os órgãos essenciais do cristianismo posterior estavam contidos no cristianismo dos tempos apostólicos. Antes, porém, examinaremos um por um todos os artigos da tese racionalista.
Refutação da tese racionalista
O que os nossos adversários afirmam a respeito das intenções de Jesus, isto é, que não podia ter pensado em fundar uma Igreja por esta se encontrar fora do plano da sua missão messiânica, é um preconceito já refutado que não abordaremos novamente.
Será certo - como levianamente se afirma - que os apóstolos, iludidos pela pregação de Jesus e esperando a próxima vinda do reino escatológico, também não puderam pensar na organização de uma instituição durável? Se assim fosse, se os apóstolos e os primeiros cristãos estivessem verdadeiramente convencidos que Jesus Cristo lhes tinha anunciado a vinda próxima dum reino escatológico, porque é que a comunidade cristã não se dissolveu quando viu que tinha sido enganado por Jesus? Este raciocínio é tão claro que os próprios historiadores liberais, como Harnack, reconhecem que o Evangelho era alguma coisa mais do que isso, alguma coisa nova, a saber, “a criação de uma religião universal fundada na religião do Antigo Testamento”.
Dizer que se devem aos carismas os primeiros elementos da organização da Igreja, é também uma hipótese destituída de fundamento. É evidente - como o prova a experiência quotidiana - que a inspiração individual conduz quase sempre à anarquia. É o próprio Renan que o confessa no seu Marc Aurèle: “A profecia livre, os carismas, a glossolalia e a inspiração individual eram causas mais que suficiente para reduzir o cristianismo às proporções de uma seita efêmera, como vemos na América e na Inglaterra”.
Também não é conforme à verdade afirmar que as primeiras comunidades cristãs não possuíam autonomia alguma, que não se distinguiam das sinagogas ou das escolas pagãs. Concedemos que, para suavizar as transições, se tinham feito mútuas concessões nalguns pontos secundários - as comunidades compostas exclusivamente de judeus convertidos foram autorizadas a conservar a circuncisão, ao passo que os pagãos eram admitidos ao batismo sem passar pelo judaísmo - mas propugnamos desassombradamente que o catolicismo apareceu, desde o primeiro dia, como uma religião completamente distinta da mosaica, porque os apóstolos reconheciam-se investidos de uma missão religiosa universal, que não receberam dos chefes do judaísmo.
Portanto, a idéia da Igreja única e universal não é particular de S. Paulo, posto que ocupe lugar preponderante no seu ensinamento. Essa idéia provém de os apóstolos terem sido discípulos do mesmo mestre, que a todos ensinou as mesmas verdades. Se as diversas igrejas do mundo só formam uma Igreja é porque são todas filhas da mesma comunidade primitiva, da Igreja Mãe de Jerusalém, que por toda parte pregou sempre a mesma fé.
É falsidade dizer que a ruína de Jerusalém fez deslocar o centro de gravidade do cristianismo, porque já no tempo das missões de S. Paulo e, por conseguinte, muitos anos antes da ruína de Jerusalém (ano 70), as comunidades cristãs tinham abandonado o judeo-cristianismo e já estavam desligadas da capital de Judéia. É natural que Roma tenha sido escolhido para centro da cristandade, por ser a capital do Império greco-romano; “mas fazemos certas reservas", diz Mons. Batiffol, "quanto aos termos políticos que se empregam para descrever a cooperação de Roma e também quanto à tendência de consideram como causa o que é apenas circunstância” (Batiffol, "L´Église naissante et le catholicisme").
Não se pode atribuir a influência atribuída ao Símbolo dos Apóstolos na criação da unidade da Igreja e da reação contra as heresias nascentes; porque, não é provável que tenha sido imposto às igrejas gregas o texto romano, que era a profissão de fé batismal comum a Roma e às igrejas da Gália e da África no tempo de S. Ireneu e mesmo antes dessa época. É até provável que estas não tenham possuído nenhum formulário comum da sua fé antes do Concílio de Nicéia (325). Não se pode, portanto, sustentar que o Símbolo romano tenha sido a causa da unidade.
Supõe os racionalistas que o Símbolo dos Apóstolos foi redigido por ocasião das heresias nascentes, mormente no gnosticismo e no montanismo. Ora, nessa fórmula não aparece indício algum anti-gnóstico, e os artigos encontram-se equivalentemente nos escritos anteriores à heresia gnóstica, por exemplo, entre os apologistas, como S. Justino (150), Aristides (140) e S. Inácio (110). Pode dizer-se até que, ao menos na substância, já fazem parte da literatura cristã da idade apostólica.
O Símbolo romano, com maior razão ainda, é independente do montanismo, porque este é muito posterior e só penetrou no mundo cristão do ocidente depois do ano 180, data em que, segundo o parecer dos próprios adversários, já estava redigido o Símbolo.
Fonte: Bibliografia: Tratados de filosofia; em particular o Manual de Filosofia de C. Lahr (Porto, Apostolado da Imprensa), e os de Fonsegrive, Jolivet e G. Sortais. - S. Tomás, Summa Teológica, De veritate. - Kleutgen, La philosophie scholastique (Gaume). - De Pascal, Le Christianisme, I. Part. La verité da la Religion (Lethielleux). - P. Julien Werquin, L´Évidence et la Science.
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