No mês passado apresentei as diversas traduções bíblicas que atualmente se encontram na praça. Mas não basta comprar uma Bíblia, importa saber lê-la. Existe o que se poderia chamar uma leitura "inocente". O leitor leva a sério o que está escrito, não duvida da fidelidade substancial do texto, compreende vagamente que nem tudo deve ser tomado ao pé da letra, sabe que tanto os grandes personagens bíblicos como os autores usam de figuras, de expressões orientais etc.; em uma palavra, é uma leitura baseada no bom senso. De acordo com essa prática desenvolveu-se o costume de distinguir entre o sentido literal (a história ou a palavra como tal, entendida conforme a intenção do autor) e o sentido pleno ou espiritual (um novo significado que o Espírito inspira aos leitores, em relação aos problemas do momento ou à vida espiritual pessoal).
Nessa leitura espiritual, nem sempre respeitou-se a intenção do autor. Ou, então, isolava-se uma palavra ou frase e atribuía-se a ela um sentido que nada tinha a ver com o que o autor quis dizer. Enfim, a leitura de bom senso ficou também abalada porque, com o decorrer do tempo, houve quem abusasse da Escritura para fá-la afirmar o que não pretendia dizer, por exemplo, para defender certos privilégios ou atacar os adversários. Ainda hoje se inventa todo tipo de explicações para dizer que o 666 do Apocalipse refere-se ao Papa.
Por isso surgiu, no fim da Idade Média, início da modernidade, uma reação que foi denominada "leitura crítica" da Bíblia. Examinava com métodos adequados, em primeiro lugar, qual era mesmo o texto da Bíblia, pois antigamente transcrevia-se a Bíblia à mão e, apesar da vigilância, algumas cópias ficavam menos confiáveis. Este primeiro passo é chamado "crítica textual".
Em segundo lugar, procurava-se saber um pouco mais sobre os fatos mencionados na Bíblia, para ver o que era "histórico" no sentido moderno (comprovado pelos critérios da probabilidade histórica). Isso se chama "crítica histórica". Ora, nem tudo o que é real pode ser comprovado por esses critérios da ciência histórica moderna. Um dos critérios de probabilidade é a analogia ou semelhança com outros fatos. Esse critério não se aplica à ressurreição de Jesus, por exemplo. Portanto, quando hoje se fala em realidade histórica, deve-se ter claro que é um conceito filtrado pelos métodos modernos.
Enfim, procurava-se saber qual tinha sido a intenção do autor, a natureza de seu escrito e de suas diversas partes, a quem ele se dirigia, em que circunstâncias havia escrito, com que finalidade... É a "crítica literária".
A leitura crítica levou, sobretudo no meio protestante, à tentação de questionar tudo. Aos poucos, colocavam-se em dúvida todos os fatos extraordinários, os milagres, a ressurreição e, enfim, até as palavras de Jesus. Diante desse exagero "liberal" surgiu - nas Igrejas protestantes - a tendência de assegurar pelo menos alguns dogmas fundamentais, bem fundados no texto literal da Bíblia (a existência de Deus, a divindade de Jesus, a Trindade etc.). A essa maneira de ler deu-se o nome de "fundamentalismo". Hoje, porém, esse termo significa a mentalidade de tomar ao pé da letra ou como verdade imutável uma frase qualquer da Bíblia, o que pode levar aos piores absurdos.
Assim, existem nos Estados Unidos grupos querendo que na escola se ensine que a criação ocorreu em seis dias, como está na primeira página da Bíblia; nega-se toda a conquista da ciência da natureza; mas as mesmas pessoas andam pacificamente em carros ou aviões e usam computadores sofisticados baseados exatamente na ciência que eles rejeitam. É muita coragem! Nós próprios conhecemos a atitude fundamentalista de quem recusa transfusões de sangue, porque está escrito na Bíblia que não se pode comer ou tomar sangue. Mas é evidente que uma transfusão de sangue ou uma vacina nada têm a ver com os costumes idolátricos que a Bíblia quis refrear, lá nos tempos antigos, muito antes de Jesus Cristo.
Os fundamentalistas dizem que eles "não interpretam" a Bíblia, não lhe dão novo sentido. Mas isso é impossível. Qualquer coisa que a gente lê deve ser interpretada para ter sentido. Quem não interpreta é a traça ou o caruncho: simplesmente vão roendo...
Cabe aqui uma palavra sobre a leitura "ao acaso". Abre-se a Bíblia numa página qualquer e a primeira frase que cai sob a vista é tida como uma mensagem para aquele momento. Pode até ser. A Bíblia está cheia de frases úteis (embora haja outras...). Mas, muitas vezes, a pessoa terá de interpretar bastante para aplicar a frase a seu caso. Certamente não é uma palavra direta de Deus escrita especialmente para esse caso. Vale como uma "inspiração", mas não como uma "inspiração, mas não como leitura bíblica sistemática. Basta observar que, com esse método, as primeiras e as últimas páginas geralmente ficam esquecidas...
Mais valiosa é a leitura da Bíblia que ocorre na liturgia. Só na missa ou culto dominical, organizado num ciclo de três anos (A, B e C), é lido, Domingo após Domingo, todo o Novo Testamento, como também os trechos do Antigo Testamento que mais ajudam a compreender o Novo (que é mais importante, pois contém a palavra e a vida de Jesus). Portanto, quem vai todo Domingo à missa ou ao culto e tem a sorte de ouvir um bom sermão ou homilia baseados nas leituras bíblicas está fazendo o melhor curso bíblico que se pode imaginar. Se os padres e os agentes pastorais tivessem mais consciência disso, cuidariam melhor das leituras bíblicas e das reflexões que se seguem. Essa leitura que acompanha a liturgia é a melhor maneira de "ler a Bíblia na Igreja", ou seja, em comunhão com a comunidade que a concebeu desde o início e nela reconheceu sempre o espírito que a anima. Pois é possível também ler a Bíblia com um espírito contrário, "espírito de porco". Se compararmos a Bíblia com o álbum de fotografias de nossa família, no qual reconhecemos os momentos mais ricos, como fica esse álbum nas mãos de alguém que nos detesta e odeia?! Pois bem, atualmente há muitos que falam e escrevem sobre a Bíblia com um espírito contrário ao que a Igreja quer. Por isso, importa "ler a Bíblia na Igreja", e o melhor para tanto é a liturgia.
Ler a Bíblia na Igreja significa "ler em comunidade", não cada um por si, preocupado apenas consigo mesmo. Significa ler a Bíblia ao lado dos pobres e excluídos, de quem Jesus e Deus mesmo sempre tomaram partido, desde que Deus libertou o povo da escravidão do Egito até o momento em que Jesus decidiu não fugir, mas enfrentar os poderosos que levavam a mal o fato de ele ensinar a liberdade dos filhos de Deus aos pescadores e lavradores da Galiléia. Importa restituir à comunidade seu "álbum de fotografias". Já não podemos nos contentar com algumas explicações parciais de eruditos que não sentem o que o povo está sentindo. A Bíblia fala da vida do povo, que somos todos nós. Fazer ver isso é a verdadeira leitura da Bíblia
Fonte: (*)Johan Konings Revista "MENSAGEIRO DO CORAÇÃO DE JESUS", Vol 103, Nº 1.154, pág. 14-16, outubro de 1997, "Que Bíblia Comprar?" Vol 103, Nº 1.155, pág. 16-18, novembro de 1997, "Como Ler a Bíblia" Edições Loyola, Fone: (011) 6914-1922 A reprodução destes artigos em nosso website foi gentilmente autorizada pelo autor
Nessa leitura espiritual, nem sempre respeitou-se a intenção do autor. Ou, então, isolava-se uma palavra ou frase e atribuía-se a ela um sentido que nada tinha a ver com o que o autor quis dizer. Enfim, a leitura de bom senso ficou também abalada porque, com o decorrer do tempo, houve quem abusasse da Escritura para fá-la afirmar o que não pretendia dizer, por exemplo, para defender certos privilégios ou atacar os adversários. Ainda hoje se inventa todo tipo de explicações para dizer que o 666 do Apocalipse refere-se ao Papa.
Por isso surgiu, no fim da Idade Média, início da modernidade, uma reação que foi denominada "leitura crítica" da Bíblia. Examinava com métodos adequados, em primeiro lugar, qual era mesmo o texto da Bíblia, pois antigamente transcrevia-se a Bíblia à mão e, apesar da vigilância, algumas cópias ficavam menos confiáveis. Este primeiro passo é chamado "crítica textual".
Em segundo lugar, procurava-se saber um pouco mais sobre os fatos mencionados na Bíblia, para ver o que era "histórico" no sentido moderno (comprovado pelos critérios da probabilidade histórica). Isso se chama "crítica histórica". Ora, nem tudo o que é real pode ser comprovado por esses critérios da ciência histórica moderna. Um dos critérios de probabilidade é a analogia ou semelhança com outros fatos. Esse critério não se aplica à ressurreição de Jesus, por exemplo. Portanto, quando hoje se fala em realidade histórica, deve-se ter claro que é um conceito filtrado pelos métodos modernos.
Enfim, procurava-se saber qual tinha sido a intenção do autor, a natureza de seu escrito e de suas diversas partes, a quem ele se dirigia, em que circunstâncias havia escrito, com que finalidade... É a "crítica literária".
A leitura crítica levou, sobretudo no meio protestante, à tentação de questionar tudo. Aos poucos, colocavam-se em dúvida todos os fatos extraordinários, os milagres, a ressurreição e, enfim, até as palavras de Jesus. Diante desse exagero "liberal" surgiu - nas Igrejas protestantes - a tendência de assegurar pelo menos alguns dogmas fundamentais, bem fundados no texto literal da Bíblia (a existência de Deus, a divindade de Jesus, a Trindade etc.). A essa maneira de ler deu-se o nome de "fundamentalismo". Hoje, porém, esse termo significa a mentalidade de tomar ao pé da letra ou como verdade imutável uma frase qualquer da Bíblia, o que pode levar aos piores absurdos.
Assim, existem nos Estados Unidos grupos querendo que na escola se ensine que a criação ocorreu em seis dias, como está na primeira página da Bíblia; nega-se toda a conquista da ciência da natureza; mas as mesmas pessoas andam pacificamente em carros ou aviões e usam computadores sofisticados baseados exatamente na ciência que eles rejeitam. É muita coragem! Nós próprios conhecemos a atitude fundamentalista de quem recusa transfusões de sangue, porque está escrito na Bíblia que não se pode comer ou tomar sangue. Mas é evidente que uma transfusão de sangue ou uma vacina nada têm a ver com os costumes idolátricos que a Bíblia quis refrear, lá nos tempos antigos, muito antes de Jesus Cristo.
Os fundamentalistas dizem que eles "não interpretam" a Bíblia, não lhe dão novo sentido. Mas isso é impossível. Qualquer coisa que a gente lê deve ser interpretada para ter sentido. Quem não interpreta é a traça ou o caruncho: simplesmente vão roendo...
Cabe aqui uma palavra sobre a leitura "ao acaso". Abre-se a Bíblia numa página qualquer e a primeira frase que cai sob a vista é tida como uma mensagem para aquele momento. Pode até ser. A Bíblia está cheia de frases úteis (embora haja outras...). Mas, muitas vezes, a pessoa terá de interpretar bastante para aplicar a frase a seu caso. Certamente não é uma palavra direta de Deus escrita especialmente para esse caso. Vale como uma "inspiração", mas não como uma "inspiração, mas não como leitura bíblica sistemática. Basta observar que, com esse método, as primeiras e as últimas páginas geralmente ficam esquecidas...
Mais valiosa é a leitura da Bíblia que ocorre na liturgia. Só na missa ou culto dominical, organizado num ciclo de três anos (A, B e C), é lido, Domingo após Domingo, todo o Novo Testamento, como também os trechos do Antigo Testamento que mais ajudam a compreender o Novo (que é mais importante, pois contém a palavra e a vida de Jesus). Portanto, quem vai todo Domingo à missa ou ao culto e tem a sorte de ouvir um bom sermão ou homilia baseados nas leituras bíblicas está fazendo o melhor curso bíblico que se pode imaginar. Se os padres e os agentes pastorais tivessem mais consciência disso, cuidariam melhor das leituras bíblicas e das reflexões que se seguem. Essa leitura que acompanha a liturgia é a melhor maneira de "ler a Bíblia na Igreja", ou seja, em comunhão com a comunidade que a concebeu desde o início e nela reconheceu sempre o espírito que a anima. Pois é possível também ler a Bíblia com um espírito contrário, "espírito de porco". Se compararmos a Bíblia com o álbum de fotografias de nossa família, no qual reconhecemos os momentos mais ricos, como fica esse álbum nas mãos de alguém que nos detesta e odeia?! Pois bem, atualmente há muitos que falam e escrevem sobre a Bíblia com um espírito contrário ao que a Igreja quer. Por isso, importa "ler a Bíblia na Igreja", e o melhor para tanto é a liturgia.
Ler a Bíblia na Igreja significa "ler em comunidade", não cada um por si, preocupado apenas consigo mesmo. Significa ler a Bíblia ao lado dos pobres e excluídos, de quem Jesus e Deus mesmo sempre tomaram partido, desde que Deus libertou o povo da escravidão do Egito até o momento em que Jesus decidiu não fugir, mas enfrentar os poderosos que levavam a mal o fato de ele ensinar a liberdade dos filhos de Deus aos pescadores e lavradores da Galiléia. Importa restituir à comunidade seu "álbum de fotografias". Já não podemos nos contentar com algumas explicações parciais de eruditos que não sentem o que o povo está sentindo. A Bíblia fala da vida do povo, que somos todos nós. Fazer ver isso é a verdadeira leitura da Bíblia
Fonte: (*)Johan Konings Revista "MENSAGEIRO DO CORAÇÃO DE JESUS", Vol 103, Nº 1.154, pág. 14-16, outubro de 1997, "Que Bíblia Comprar?" Vol 103, Nº 1.155, pág. 16-18, novembro de 1997, "Como Ler a Bíblia" Edições Loyola, Fone: (011) 6914-1922 A reprodução destes artigos em nosso website foi gentilmente autorizada pelo autor
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