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15 de julho de 2012

Como ler e como não ler a Bíblia

Como ler e como não ler a Bíblia (1)
J. Konings


Quero escrever um artigo mais leve, para o tempo de baixa conjuntura entre Ano Novo e Carnaval.

São idéias gerais, mas talvez importantes para quem mexe com a Bíblia. Pois do ponto de vista da fé cristã (como vivida na nossa Igreja católica) nem todas as maneiras de “mexer com a Bíblia” são proveitosas.

O que vou dizer poderá parecer a algum leitor uma crítica a seu modo de fazer – então me desculpe, mas se é somente para concordar com tudo o que se faz não vale a pena (ou a pena e a tinta) escrever.

Uma maneira corriqueira de “mexer” com a Bíblia é esta: colocá-la, aberta numa página com imagem, sobre uma estante e mexer com ela cada semana para tirar a poeira.
Eu poderia passar ao lado dessa maneira, por não ser um modo de ler. Contudo, quero comentar rapidamente.
Para certas pessoas a Bíblia não passa de um objeto sagrado, quem sabe algo que traz sorte para a casa...
Será que isso é “escutar a palavra de Deus”?
Parece antes aquilo que se faz com a velha avó: todo o mundo venera, ninguém escuta...

Há também a leitura por mera curiosidade. Um dia, há muito tempo atrás, tive de agüentar no ônibus, de Porto Alegre até o Rio de Janeiro, um vizinho que tinha adivinhado que eu era padre e me importunou durante a viagem inteira com todas as histórias escabrosas que aparecem na Bíblia. Era “dono” de uma favela, mexia com jogo de bicho etc. Certamente estudou com muita gana a arca de Noé.


Ora, esse modo de ler a Bíblia às avessas – procurando o contrário da mensagem de Deus – não é, no fundo, muito diferente dos que procuram na Bíblia só problemas científicos. Será que a palavra de Deus serve para embananar nosso conhecimento científico, cujas aplicações tecnológicas são tão bem-vindas? Que a terra existe há centenas de milhões de anos e que no universo tempo e espaço são relativos, há pessoas que não o admitem, porque na Bíblia está que Deus fez tudo em seis dias (ainda que esses dias sejam um pouco diferentes dos nossos). Ora, tais pessoas deveriam pensar bem que o computador que regula sua máquina de lavar ou a injeção de seu Fiat Mille deve tudo a essa mesma ciência.

Mas então, “se não se pode acreditar no que está na Bíblia”, como dizem, para que serve?

Já disse muitas vezes (nos meus livros A Biblia nas suas origens e hoje, Ed. Vozes; e A Palavra se fez livro, Ed. Loyola) que a Bíblia não “serve” para nada. Pelo menos não do ponto de vista utilitarista. Um amigo, ou a palavra de um amigo não “serve para algo”. É o que é, recebe seu valor daquilo que é.

A Bíblia é palavra de Deus, porém não um bilhete explicando o modo de usar do universo. É o espelho da conversa que Deus trava conosco naquilo que nos acontece. A nós? Sim. Aos nossos predecessores na história humana, mas também a nós mesmos, pois Adão e Eva somos todos nós. E Abraão, Isaac, Jacó e Jesus também.

A Bíblia não é um livro caído do céu, como dizem os Mórmons a respeito de suas revelações que uns duzentos anos atrás caíram do céu nos Estados Unidos (bem lá!). É um livro humano, que narra o que acontece entre Deus e as pessoas humanas. E na medida em que a lemos assim, torna-se palavra de Deus para nós. Então, Deus nela vem à fala. Mas para um cão, a Bíblia serve apenas para experimentar seus dentes.

Devemos, portanto, ler a Bíblia como uma palavra humana na qual Deus vem à palavra. Esse “vir à palavra” – chegar a falar – é o que se chama a inspiração: o espírito, o sopro de Deus habita os textos bíblicos, porque está presente naquilo que a Bíblia conta.
Jornal de Opinião (direitos) 919- 08-14 de janeiro de 2007- reproduzido com autorização

Como não ler e como ler a Bíblia (2)
J. Konings

Concluí meu artigo anterior dizendo que devemos ler a Bíblia como um texto humano na qual Deus vem à palavra. Isso, porque nos textos bíblicos – relatos de humanos sobre coisas humanas – habita o sopro, o “espírito” de Deus, e é a isso que se chama “inspiração”. Claro que esse sopro de Deus só pode habitar nesses relatos humanos porque narram coisas em que Deus está implicado. Pois bem, depois de muitos Pais da Igreja e Papas, o Concílio Vaticano II repete: a Bíblia deve ser lida no espírito em que foi escrita (Constituição dogmática Dei Verbum, n. 12 – este texto do Concílio é leitura obrigatória para todo católico que pretende dizer como se deve ler a Bíblia; foi transcrito em linguagem simples pela CNBB, em edição que se encontra nas livrarias católicas).

Pois bem, o problema central da leitura bíblica é: qual é esse espírito? (Escrevo com minúscula para não remeter imediatamente ao “Espírito Santo” do catecismo e do Credo, que é tratado nos termos da teologia grega do IV e V séculos, nem sempre facilmente compreensíveis para nós.)

No evangelho de João, Jesus diz que Deus é espírito (João 4,24) e quer ser adorado em espírito e verdade. Ele diz isso no contexto da pergunta da samaritana, sobre se Deus deve ser adorado no santuário da Samaria ou no de Jerusalém. Pelo contexto, a resposta de Jesus parece querer dizer que Deus não é um objeto geográfico nem um objeto de culto material, mas está acima de todas essas limitações humanas. Por isso mesmo é chamado “espírito”. É uma metáfora. Espírito significa vento, sopro, alento, respiração, inspiração... Trata-se de algo que funciona sem que se possa ver (João 3,8: O vento-espírito sopra onde quer e ouves sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai). Em termos filosóficos chamamos isso de transcendência de Deus: está acima de tudo. É o agir invisível e indescritível de Deus. Pois bem, esse agir está presente naquilo que a Bíblia nos conta, e devemos ler a Bíblia nesse mesmo “espírito”, deixando-nos tocar por esse mesmo agir invisível e indescritível de Deus.

O que estou dizendo é perigoso. Nem se imagina o que, no decorrer dos tempos, determinadas pessoas atribuíram a essa ação do espírito nelas... A Igreja teve de intervir muitas vezes para dizer: isso não...

Existe algo como o bom senso cristão: o espírito da Sabedoria, que juntamente com o Temor do Senhor seja talvez o mais precioso dos sete “dons do Espírito”. É a percepção da coerência do agir invisível de Deus. É verdade que a sabedoria de Deus está acima da nossa como o céu acima da terra (Isaías 55,8-9), mas Deus não é louco! Seu agir, também o invisível, é muito coerente. Mas coerente com quê? Como cristãos dizemos: com Cristo. Com Jesus o Nazareno que é o Cristo, o Messias enviado por Deus.

O espírito da Bíblia, o sopro de Deus na Bíblia, é coerente com Jesus de Nazaré, com aquilo que Jesus disse e fez. Este é o critério cristão para ler a Bíblia. O resto é acessório.
Se o homem foi criado direto do barro da terra ou passando pelo macaco não é uma questão fundamental da Bíblia, é apenas uma questão de estética...

Para nós cristãos o critério para reconhecer o espírito de Deus e para ler sua “criação literária”, a Bíblia, é Jesus feito carne e morto na cruz. Assim ensina São João ao tratar das inspirações que as pessoas na sua comunidade pretendiam ter. “Nisto sabemos se um espírito (ou inspiração) vem de Deus: de Deus é todo espírito que professa Jesus Cristo vindo na carne” (1João 4,2).

Jornal de Opinião ( direitos) n° 920, 15-21 de janeiro de 2007. Reproduzido com autorização

Como não ler e como ler a Bíblia (3)
J. Konings

Jesus é o ponto de referência da leitura bíblica. Não o Jesus que eu invento no meu coração, mas Jesus, o Nazareno, o Cristo, vindo em carne – carne que o identificou no meio do seu povo judeu, que foi pregada na cruz, que foi vista e adorada na ressurreição. O Jesus histórico e o Cristo da fé, Jesus Cristo inteiro.

A leitura cristã da Bíblia não faz como o mineiro quando come mingau, começando pelas bordas. Começa pelo centro. Nisto está a diferença com a leitura judaica e, ao mesmo tempo, sua proximidade com esta.

Explico. O espírito de Deus que trava conversa conosco na Bíblia é o espírito que veio sobre Jesus quando participou do movimento de João e se deixou batizar por ele no rio Jordão: “Tu és meu filho, no qual está meu agrado” (Marcos 1,11). A partir daí Jesus assumiu ser o enviado de Deus para pôr em ação o seu “agrado”, sua vontade, seu reino. Jesus não era um messias (um “ungido”, em grego “cristo”) como se esperava, um rei ou um sacerdote. Esses recebiam uma unção material, Jesus recebeu uma “unção” diferente, a do profeta: a unção do espírito derramado sobre ele para anunciar a boa-nova de Deus a todos, a começar pelos pobres, os excluídos, os estrangeiros (leia Lucas 4,16-30).

Ora, para tomar como centro da Bíblia o que aconteceu com Jesus, e pelo espírito de Deus que o animava ainda nos atinge hoje, é preciso sintonizar com a vida de Jesus no seu tempo e no seu povo. Ele “nasceu de mulher, nasceu sob a Lei”, diz Paulo (Gálatas 4,4), ou seja, como verdadeiro ser humano e judeu. Sua sensibilidade e pensamento se formaram a partir daquela “Instrução”, que com uma palavra pouco adequada chamamos Lei, mas que na realidade é a memória das grandes coisas que Deus fez e com Israel (no meio das barbaridades que o povo cometia), consciência da Aliança do povo com Deus que assim se deu a conhecer, como um Deus de amor e fidelidade. Foi esse amor e fidelidade, esse espírito da Aliança, que levou Jesus a cumprir sua missão até o fim sangrento, levando assim à plenitude a pregação dos Profetas, os “guardiães da Aliança”.

Assim vemos que Jesus, o centro da leitura cristã da Bíblia, é a plenitude da Lei e da Aliança, centro das Escrituras de seu povo judeu. Por isso mesmo, a leitura cristã da Bíblia é impensável sem as Escrituras judaicas, a Antiga ou Primitiva Aliança (Testamento).
“Eis por que esses livros divinamente inspirados conservam um valor perene”, diz o Concílio Vaticano II na Dei Verbum (n. 14), citando o que Paulo escreveu aos primeiros cristãos de Roma, que eram, como ele e como Jesus, de origem judaica: “Tudo o que foi escrito [a Lei e os Profetas], o foi para nossa instrução” (Romanos 15,4). Por isso também o mesmo Concílio enriqueceu a liturgia dominical com mais uma leitura, a leitura do Antigo Testamento que inicia a Liturgia da Palavra.

É nesta ótica que compreendemos por que São Jerônimo pôde dizer: “Ignorar as Escrituras é ignorar Cristo” (cf. Dei Verbum, n. 25). As Escrituras “servem” para sintonizar com Cristo e sermos habitados pelo espírito que mexeu com ele.

Jornal de Opinião ( direitos) n° 921, 22-28 de janeiro de 2007 . Reproduzido com autorização

Como não ler e como ler a Bíblia (4)
J. Konings

Ler a Bíblia é tornar-se judeu crente com Jesus, judeu crente; e, quanto ao Novo Testamento, judeu cristão da primeira hora, com os Apóstolos e Evangelistas que eram judeus cristãos da primeira hora.
A gente se mete na carne dessas pessoas, se deixa contagiar por sua cultura, por sua maneira de perceber o mistério de Deus cujos pensamentos estão acima dos nossos como o céu acima da terra, Deus que é espírito (João 4,24). Isso é ler a Bíblia no espírito em que ela foi escrita (Dei Verbum, n. 12).

Com é possível isso?


Vivemos a dois mil anos daí! Isso só é possível porque uma comunidade ininterruptamente conservou esse espírito, praticando-o e guardando sua memória no seu culto. Por isso a Liturgia da Palavra ocupa um lugar primordial no culto cristão e não por nada o Concílio lembrou que ela faz parte integrante da Missa... Repito, porém, que não é só lendo e celebrando mas, sobretudo, praticando que essa comunidade guarda o espírito das Escrituras, que é o Espírito de Cristo. Se só guardasse a letra, seria tão relevante quanto um manual de computação sem um instrutor que mostre como funciona... ninguém entenderia.
O que a comunidade guarda é o espírito, aquilo que faz viver, enquanto a letra mata. Sem o espírito que levou alguns cristãos, de geração em geração, a reviver o amor fraterno radical de Jesus, nós pura e simplesmente não compreenderíamos o que Jesus quis dizer com “Amai-vos uns aos outros”.

Não se trata, porém, de reviver o amor de Jesus reproduzindo-o exteriormente, mas de reinventar esse amor em cada nova geração, fazendo do ontem de Jesus o hoje de sua comunidade. O engajamento social, a luta por uma terra que seja para todos, a ingrata dedicação ao ensino popular num país que só pensa em diversão e brilho, são reinvenções do amor de Cristo, explicações palpáveis do sentido das Escrituras no espírito de Jesus.
Agora você entende por que a Escritura deve ser lida “na Igreja”, isto é, participando do espírito da comunidade que guarda e atualiza o espírito de Jesus.

Para concluir, uma última palavra sobre o modo de falar das Escrituras. Pois, pelo início da conversa, parece que não se deve tomar tudo ao pé da letra. Os Pais da Igreja, os últimos Papas e o Concílio Vaticano II o dizem com clareza: a “condescendência” de Deus faz com que as palavras de Deus expressas por línguas humanas se fizeram semelhantes à linguagem humana (Dei Verbum n. 13). Como Jesus-Palavra se tornou carne, tornou-se também livro, com todas as implicações disso (cf. meu livro: A Palavra se fez livro, Ed. Loyola). A Palavra de Deus assumiu a natureza humana, só não o pecado, mas sim os errinhos de transcrição... (por isso, não se escandalize quando encontra um errinho gráfico na sua Bíblia). Assumiu sobretudo o modo humano de falar, a cultura de um pequeno povo de dois a três mil anos atrás. E esse povo imaginava a criação do ser humano como o trabalho de um oleiro modelando do barro algo que seria sua própria imagem, infundindo-lhe seu sopro de vida... No portal norte da catedral de Chartres, na França, uma escultura do século XII evoca aquele momento. O Criador se dobra sobre o “Adão de Barros”, moldando-lhe seu próprio rosto, e esse rosto é o rosto de... Cristo.

Apesar de tudo, a Bíblia tem razão....

Jornal de Opinião ( direitos)-n°922 , 29de janeiro-4 de fevereiro de 2007. Reproduzido com autorização

J. Konings é Pe. J.Konings é destacado biblista, professor da Faculdade de teologia do Instituto Santo Inácio-ISI- em Belo Horizonte, com inúmeros livros publicados. É tradutor de várias ediç~~oes da bíblias no Brasil, incluindo a coordenação da tradução da Bíbli



Fonte: J. Konings

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