1. INTRODUÇÃO
Todos nós estamos habituados a falar da mãe de Jesus como “A Virgem Maria”.
Ela é invocada com esse nome em ambientes cristão-católicos e, pelo menos aqui no Brasil, por boa parte da população, ainda que inconscientemente.
Alguns estudos da língua portuguesa mostram a influência da invocação à “Virgem Maria” em expressões comuns da linguagem, por exemplo, o popular “Víxi Maria”1 .
Contudo, falar da virgindade perpétua de Maria não é uma tarefa muito simples aos ouvidos modernos.
O teólogo C. I.
Gonzáles nos lembra que “o fato de Maria ter concebido virginalmente em seu seio o Filho de Deus e ter permanecido virgem até o fim de sua vida em total entrega ao serviço da obra messiânica de seu Filho é uma verdade que pertence à integridade da confissão de nossa fé cristã”2 .
E por “integridade” considera:
1) que essa verdade não é fundamental, mas está a serviço de outra mais alta: a encarnação do Filho de Deus;
2) que essa verdade não pode ser prescindida da confissão de fé sem o risco de não sermos fiéis à totalidade do mistério salvífico de Deus para com a humanidade. Contudo, se já é difícil para nossa cultura confessar integralmente o conteúdo da fé cristã, quanto mais difícil será a aceitação desse dogma mariano em particular.
Vejamos algumas razões para as dificuldades em explicar a virgindade de Maria:
a) A supervalorização das ciências impede pensar qualquer intervenção gratuita e livre de Deus na história real. Essa dificuldade não é estritamente mariológica, mas afeta todo o campo da história da salvação. Com o avanço das pesquisas científicas, o ser humano parece ter a pretensão de ter alcançado as chaves de explicação dos mistérios do universo e da própria salvação.
b) Com a afirmação desse dogma, a Igreja é acusada de menosprezar a dignidade do matrimônio.
c) Não só o matrimonio é colocado em questão. Para outros, que consideram a sexualidade uma dimensão importante da existência, “soa como se a Igreja tivesse criado o dogma para manter a repressão sexual”3. d) Há ainda a desvalorização da castidade e da virgindade numa cultura que considera o sexo como valor indiscutível e produto do mercado.
e) O movimento influenciado pela teologia liberal do século passado também contribuiu para essa desconfiança, uma vez que procurou reduzir a mensagem bíblica aos mitos e expressões literárias dos povos antigos, como os gregos, os egípcios e as religiões médio-orientais.
Para esse movimento “a verdade” está sobretudo na mensagem que os escritores bíblicos tentaram transmitir, e não no fato narrado em si.
f) Há ainda aqueles que viram na concepção virginal de Jesus a “expressão simbólica de uma verdade transcendente”4 .
A historicidade da afirmação de fé não é negada, mas considerada secundária. Diante desse quadro de desconfiança, que vai desde a cultura moderna que valoriza o sexo como produto do mercado, passando pela crítica científica e chegando inclusive a alguns ambientes da teologia e da pastoral, não é sem importância perguntar:
o dogma da virgindade de Maria tem alguma coisa a dizer aos homens e mulheres de hoje?
Se conseguirmos apontar alguns caminhos para responder afirmativamente a essa questão, então teremos alcançado o objetivo deste trabalho.
2. A VIRGINDADE DE MARIA NA ESCRITURA
A conceição virginal de Jesus não é um fato tranqüilamente aceito pelos biblistas. “Os textos do NT que falam diretamente de Maria são escassos e controvertidos do ponto de vista exegético”5.
O texto de Paulo que se refere ao nascimento de Jesus (“nascido de mulher” - Gl 4,4) não contêm uma referência explicita ao tema da virgindade. Marcos refere-se a Jesus como “o filho de Maria” (Mc 6,3).
O Evangelho segundo João traz em 1,13 uma expressão complicada: “eles, que não foram gerados nem do sangue, nem de uma vontade da carne, nem de uma vontade do homem, mas de Deus”. A leitura no singular nos leva a pensar em Jesus, nascido segundo Deus. Contudo a Bíblia de Jerusalém nos mostra em nota que “a leitura no plural é atestada pela maioria dos manuscritos gregos”6.
As afirmações diretas sobre a virgindade de Maria cabem a Mateus e Lucas. Mt 1,18 diz que Maria, antes de coabitar com José, “achou-se grávida pelo Espírito Santo”. No versículo 25 afirma ainda que José “não a conheceu até o dia em que ela deu à Luz um filho”7. Também em Lucas a concepção virginal é envolta no mistério do Espírito Santo. À Maria, que não conhece homem algum (cf 1,34) é anunciado:
“O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus” (1,35).
O que podemos afirmar dessas narrações evangélicas? Segundo A. Murad, “embora tenham muitos elementos simbólicos, os evangelhos da infância de Jesus (Mt 1-2 e Lc 1-2) não são lendas ou mitos, mas uma reflexão que parte de acontecimentos verdadeiros.
A concepção virginal não seria uma invenção piedosa, mas algo real em que a comunidade cristã crê”8.
Da mesma forma argumenta L. Boff, segundo o qual tanto Mateus como Lucas partem da fé da comunidade. Sua intenção com relação às narrativas evangélicas é preponderantemente teológica, ou melhor, cristológicas:
“querem enfatizar uma relação única de Jesus (sua existência e seu destino) para com Deus e visam enfatizar o novo começo da humanidade iniciado com Ele”9. Mas seria esse o único objetivo dos autores sagrados? Segundo o teólogo, a resposta é não. “Tanto Lucas como Mateus não fazem especulações sobre a virgindade de Maria. Tomam-na como um pressuposto, um fato aceito sem discussão, servindo de ocasião para fazerem uma reflexão cristológica.
Os texto de Mt 1,18 e Lc 1,35 que se referem à conceição virginal de Jesus, diretamente, apontam para Jesus, mas, indiretamente, apontam também para Maria”10. Por fim, a contribuição de das teólogas I. Gebara e M. C. Bingemer sobre os dados do NT:
“Com toda a certeza os Evangelhos não querem nos dar uma detalhada descrição para saciar nossa curiosidade malsã, sobre as particularidades genéticas e biológicas que cercaram a concepção e o nascimento de Jesus. Querem, sim, em consonância com todo o conjunto de seus relatos, nos pôr diante dos olhos um sinal que interpela nossa fé, escapando à nossa compreensão.
Sinal esse que, assim como os milagres que Jesus realizava quando andava pelo mundo, não têm sua medida em si mesmo, mas aponta para algo maior, para as maravilhas que Deus opera em favor daqueles e daquelas que ama”11.
Assim os testemunhos da fé em favor da virgindade de Maria no NT ganham clareza, a não ser rebaixando-os ao plano do mito, como o fazem os “desmitologizadores” modernizantes12.
É com tal clareza que a Tradição eclesial do período pós-apostólico toma o dado bíblico para proclamar a sua doutrina sobre a virgindade de Maria.
3. A VIRGINDADE DE MARIA NA TRADIÇÃO DA IGREJA E A FORMULAÇÃO DO DOGMA
É confissão de fé de toda a Igreja, testemunhada pelos Padres sem exceção, a doutrina revelada pela Palavra de Deus segundo a qual Jesus foi concebido pelo Espírito Santo no seio da virgem Maria, e por isso mesmo pertence ao depósito da fé13. Contudo, é preciso uma observação prévia.
O Vaticano segundo nos fala de uma “hierarquia das verdades” (UR 11).
Assim, é preciso primeiro perguntar, no que concerne à doutrina da virgindade de Maria, “pelos diferentes graus de comprometimento de uma reflexão teológica que, em termos formais, deveria ser medida em sua fundamentação nos escritos bíblicos e na expressividade de seu testemunho nos documentos da tradição doutrinária da Igreja, e, sob a perspectiva de seu conteúdo, em sua importância para a confissão das centrais convicções de fé”14.
Tendo em vista esse contexto, é importante perceber que nem a pergunta pela virgindade de Maria antes do parto, nem a pergunta pela virgindade no parto ou depois do parto foi objeto de uma definição magisterial direta por parte de um concílio ecumênico de toda a Igreja.
“Manifestações nesse sentido aparecem, muito antes, de modo acidental, em texto conciliares ou sinodais, ou são – como se deveria constatar sobretudo com vistas à pergunta por um nascimento extraordinário de Jesus, no qual a virgindade de Maria foi preservada intacta – (apenas) doutrina de um concílio particular”15, a saber, o sínodo de Latrão, de 64916.
Esse fato atesta que os teólogos da Igreja antiga, em seu empenho pela formação da confissão de fé da Igreja nascente, se referiram à linguagem e a enunciados bíblicos, nos quais a maternidade virginal de Maria está claramente testemunhada, como vimos acima.
A elaboração teológica dos primeiros séculos avança gradualmente no sentido de consolidar a aquisição teológica da virgindade de Maria. Enquanto o Símbolo de Nicéia (325) ainda confessa, sem especificação a “encarnação e humanação do Filho de Deus”, já o Credo de Constantinopla (381) amplia o enunciado e formula que o Logos “encarnou-se, pelo Espírito Santo, na Virgem Maria”17.
O concílio de Éfeso decreta que Maria deve ser chamada de “progenitora (theotokos) de Deus”, visto que “a santa virgem” teria “gerado segundo a carne a Palavra que vem de Deus e se fez carne”18.
Em Calcedônia (451) temos a seguinte afirmação:
“Ensinamos todos unanimemente que nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito na divindade, perfeito na humanidade, Deus verdadeiro e homem verdadeiro; (...) gerado pelo Pai segundo a divindade antes de todos os séculos, nos últimos dias por nós, os homens, e por nossa salvação (foi gerado) da Virgem Maria, Mãe de Deus, no que diz respeito a sua humanidade”19. Já o Concílio Constantinopolitano II (553) introduz a referência explícita à virgindade perpétua:
“Encarnou-se da gloriosa Theotókos e sempre virgem Maria”20.
Com maior clareza ainda formula depois um cânone do Sínodo de Latrão, de 649, citado acima:
“Quem não confessa, de acordo com os santos padres, no sentido genuíno e verdadeiro, a santa, permanente virgem e imaculada Maria como progenitora de Deus, visto que concebeu e deu à luz, de modo incólume, nos últimos tempos, sem sêmen, do Espírito Santo, no sentido genuíno e verdadeiro, ao próprio Deus, a Palavra, nascida, antes de todos os tempos, de Deus, o Pai, sendo que sua virgindade também permaneceu incólume depois de seu nascimento, seja anátema” 21.
Por fim, a Constituição Cum quorumdam hominum, de Paulo IV, em que condena a heresia dos unitários (antitrinitários) e socinianos (7 de agosto de 1555):
“Nós, com a autoridade apostólica e de parte de Deus onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, requeremos e admoestamos aqueles que afirmaram (...) que nosso Senhor não é o verdadeiro Deus e da mesma substância em tudo igual ao Pai e ao Espírito Santo; ou que não fosse concebido segundo a carne no útero da beatíssima e sempre virgem Maria, pelo Espírito Santo, mas que nasceu do sêmem de José como todo ser humano; (...) ou que a mesma beatíssima Virgem Maria não permaneceu sempre na integridade virginal, antes, durante e depois do parto”22 .
Pelo que vimos, o desenvolvimento teológico da mariologia patrística percorre uma trajetória incialmente determinada mais por motivos cristológico-histórico-salvíficos, até um interesse expresso na pessoa e no destino da própria Maria.
Por uma voz mais autorizada, concluímos essa seção:
“Influenciado pela veneração de mártires e santos, que assumia paulatinamente formas litúrgicas definidas, e sob a influência de tendências ascéticas, o artigo de fé “nascido da Virgem Maria”, que, originariamente, tematizou sobretudo a conceição do Filho de Deus do Espírito Santo, se transformou, em termos de conteúdo, em discurso da virgindade de Maria antes, durante e depois do nascimento de Jesus (virginitas ante partum, in partu, post partum).
Enquanto o título theotokos (progenitora de Deus) ainda se encontra no contexto da discussão cristológica, a designação de Maria como a aeiparthenos (sempre virgem) reflete a situação modificada” 23. 4.
SENTIDO TEOLÓGICO E ANTROPOLÓGICO DA VIRGINDADE
Ao tentarmos encontrar um sentido teológico e antropológico da virgindade é preciso sempre tentar recuperar o seu “sentido originário”, ou seja, o sentido dado pela “Maria dos Evangelhos”, uma vez que – vimos – há grandes dificuldades para se compreender e aceitar a virgindade como valor nos dias hodiernos. A primeira distinção a ser feita aqui é entre a “virgindade fecunda” de Maria, ou seja, o fato de Ela, permanecendo virgem, conceber e dar à luz, e o carisma-opção da virgindade, entendida como estado de vida24.
O dogma mariano naturalmente se encontra na primeira afirmação, ainda que essa experiência de Maria tenha inspirado um grande número de discípulos a seguir seu exemplo, assumindo a virgindade como estado de vida. Ligada a isso está a diferenciação de uma virgindade vivida como “virtude moral”.
Para o estoicismo, a virgindade era o meio para o homem alcançar um controle perfeito das próprias emoções e desejos da alma sobre o corpo.
Assim, livre das paixões carnais, elevar-se até a divindade. Esse modo de viver a virgindade “pode articular um grande ideal bem como ocultar uma soberba que rebaixa as raízes corporais do homem”25.
Há ainda a virgindade entendida a partir do culto.
As vestais da tradição greco-romana “deviam servir à sua deusa Vesta pelo menos 30 anos após a sua consagração, em perfeita virgindade”26.
Essa virgens tinham, ademais, um status dos mais prestigiosos: “Elas prestavam ao Estado o serviço considerado como o mais elevado: manter sempre aceso o fogo sagrado, símbolo vivo da grande família pátria, renovando-o em todo 1º. de março, início do novo ano”27.
4.1 Virgindade como dom de si a Deus
A virgindade de Maria diferencia-se radicalmente dessas três concepções acima enumeradas: a virgindade entendida como estado de vida, virtude moral e serviço cúltico.
Para entendê-la, há que situar sua virgindade no ambiente do judaísmo do AT, do qual Maria é filha dileta. Nesse mundo cultural, a virgindade é vista como maldição para toda mulher.
A esterilidade provocava o desprezo da comunidade e era sinal de que Deus não estava com aquela mulher (cf. Jz 11,37-40).
É impensável a algum judeu (ou judaíta) de verdade, seja mulher ou homem, que viva nesse mundo cultural assumir um voto celibatário. Os que assim, como Jeremias, o fizeram, foi como sinal profético de denúncia e desolação para o povo (cf. Jr 16,1-4). Por isso a virgindade de Maria se faz empobrecimento desprezado pelos seus contemporâneos. Maria não canta sua virgindade, mas as grandes coisas que o Senhor fez nela (cf. Lc 1,59).
“A virgindade biológica de Maria pertence à estrutura da kénose (humilhação) da qual participou também seu Filho. Não supõe nenhum valor proclamado pela sociedade e pela religião. Maria fez desta sua situação de “baixeza” caminho de humildade, de serena entrega e de confiança ilimitada em Deus.
Na pretende nada. Apenas coloca-se na total disponibilidade.
Foi esta atitude que permitiu Deus nascer em Maria, primeiro em seu coração, depois em seu seio puríssimo”28.
Do que foi dito percebemos que a virgindade de Maria não possuía nenhum valor em si. Era meio para que a vontade de Deus se pudesse realizar em sua vida e na vida de seu povo.
4.2 Virgindade como Nova Criação
À pergunta sobre a necessidade de Deus escolher nascer de uma virgem para realizar o seu plano salvífico, algumas respostas são evocadas e precisam de uma consideração clara. A primeira consideração é que não há nenhuma necessidade a priori para Jesus não ter nascido de pai biológico. Essa posição é defendida, por exemplo, por Joseph Ratzinger, segundo o qual “a condição de Jesus como Filho de Deus (...) não (se baseia), de acordo com a fé da Igreja, no fato de Jesus não ter conhecido pai biológico; a doutrina da divindade de Jesus não seria atingida, se Jesus tivesse nascido de um matrimônio humano normal. Pois a condição de Filho de Deus, da qual fala a fé, não é um fato biológico, e, sim, ontológico”29.
Assim sendo, o nascimento virginal em termos fisiológico-biológicos (no sentido da ausência do esperma masculino) não é nenhuma necessidade indispensável para a confissão de fé em Jesus como verdadeiro Filho de Deus. Também não há nenhuma visão negativa para com o sexo.
Antes, a procriação era sinal de benção para o judaísmo, ao contrário da virgindade, vista como esterilidade maldita.
Uma terceira razão sobre o qual nos alerta L. Boff é a de que “devemos abandonar definitivamente a concepção de muitos santos Padres que achavam ser o nascimento virginal de Jesus uma condição necessária para não ser contaminado pelo pecado original”30.
Com o avanço da crítica literária e histórica o fator biológico do pecado original não mais se sustenta hoje. Assim, as razões para a concepção virginal devem ser buscadas na cristologia além da mariologia: com essa criança, com Jesus de Nazaré, o próprio Deus estabelece um novo início salvífico na história da humanidade. Um novo começo da graça salvífica, que independe da ação humana, mas se deve somente à iniciativa de Deus, a seu Espírito criador.
E nas palavras de L. Boff:
“A virgindade biológica de Maria está a serviço da realização deste desígnio divino que, somente após a sua realização, se torna de certa forma compreensível na fé (...). O biológico é suporte, expressão e sinal de outra realidade: a eclosão de uma nova humanidade. A virgindade, como transparece, não está a serviço de sua própria exaltação, mas totalmente a serviço de Cristo e de seu significado universal”31.
4.3 Virgindade de Maria como modelo de sociedade integrada
Clodovis Boff faz alguma considerações valiosas a respeito da virgindade de Maria para o campo social, especialmente num mundo marcado pelo individualismo que gera exclusão e morte.
Nesse mundo, a virgindade de Maria aparece como paradigma de vida e liberdade para todos.
4.3.1 A virgindade e autonomia
Analisando os textos bíblicos, C. Boff reconhece uma Maria que viveu a corajosa experiência de assumir “a seus riscos e perigos” o desafio que a conceição “sob o Espírito Santo” se lhe colocava à frente. Sob essa luz “podemos dizer que virgindade é a afirmação da autonomia da liberdade e da autodisciposição. Virgem é quem se move a partir de dentro e não a partir de fora. (...)
É definir-se a partir do próprio eu, e não pelas reações do outro ou pelas relações com o outro. Virgem é a figura de quem se possui, é dono de si e se contém. Donde o sentido originário de ‘continência’” . Autonomia é, contudo, o primeiro momento do ser-virgem.
A etapa posterior é a abertura e livre auto-entrega. “Eis aqui a serva do Senhor”, diz Maria. “Por isso mesmo virgindade não é renuncia ao amor, mas tão-somente ao amor narcisista, dependente e possessivo. É antes expressão do amor que é senhor de si e que se dá, não por carência, mas por generosidade e plenitude”33.
4.3.2 A virgindade e fecundidade
Virgindade não é só autonomia e abertura. É essencialmente geração de vida, fecundidade. Por isso é sempre materna:
“Isso aparece claro nessa forma particular de virgindade que é o celibato presbiteral, potencialmente rico de fecundidade apostólica. Também do ponto de vista estritamente social, a virgindade possui sua potencialidade.
É capacidade de produzir frutos nos mais diversos campos: filosófico, científico, social, político e religioso”34. Há ainda um outro exemplo de fecundidade que podemos contemplar na Mãe de Jesus e que é modelo para a sociedade de hoje, tão marcada pela auto-suficiência.
A virgindade no AT e mesmo no tempo de Maria é expressão da pobreza do povo. E Maria é, biblicamente, o tipo do povo pobre, impotente e sem futuro35.
E é justamente nessa pobreza que Deus age para gerar o seu Filho, aquele que veio para que “todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Assim, a virgindade “mariana” aparece como uma fecundidade capaz de gerar vida nova, para si e para o seu povo.
É Deus agindo para tirar da impotência a Vida, pois para Ele “nada é impossível” (Lc 1,37). Concluímos essa seção com as palavras do próprio Clodovis:
“A essa altura calha bem uma aplicação social. Semelhantemente à Virgem, também o povo pobre e fraco pode ser fecundado pelo Espírito de Deus e gerar vida e libertação. O santo Pneuma, que faz o deserto florescer (cf. Is 32,15), que tira água do rochedo (cf. Sl 105,41; 114,8), que faz os mortos ressurgirem (cf. Rm 4,17; Hb 11,19), é o mesmo que faz a Virgem conceber e dar á luz.
Ele pode igualmente fecundar o povo pobre e fraco a fim de gerar libertação e paz”36.
5. CONCLUSÃO
Cabe reconhecer que as propostas de compreensão do dogma da virgindade perpétua de Maria apresentadas pelo Magistério e pela teologia aqui sintetizadas não são simples nem óbvias.
Os questionamentos apresentados na introdução continuam válidos depois de percorrido esse breve trajeto. É fato também que a teologia e a pregação nem sempre souberam apresentar os valores da castidade e da virgindade em seu aspecto positivo, mas demasiadas vezes apenas do pondo de vista do pecado37. Contudo, muita coisa positiva tem sido feita “dentro” e “fora” da Igreja, no que diz respeito a uma experiência radical de vivência do Evangelho, o que nos dá motivos de esperança.
Como dissemos ao longo desse trabalho, é o Deus que consegue fazer brotar vida de onde só existe miséria.
E é por isso que o dogma da virgindade perpétua de Maria tem muito a ensinar aos homens e mulheres de hoje.
Oxalá todos nós, ao contemplarmos a Virgem Maria, coloquemos nossos dons a serviço da geração da vida e da liberdade do mundo, na humildade, na doação de si e na solicitude pelo outro.
Sempre sabendo, porém, que onde nossas possibilidades humanas parecem perder a força e a vitalidade, ali a graça transformadora de Deus pode gerar vida nova e libertação.
“A virgindade de Maria nos diz quem é o ser humano diante do Senhor. Somos como a terra virgem e inexplorada, cheia de viço e com potencial imenso para sermos fecundados pelas sementes do amor de Deus.
Tudo pode acontecer quando a gente se entrega a ele. Uns se tornam fecundos cultivando o amor com seu companheiro ou companheira, gerando e educando filhos.
E também dando frutos bons na Igreja, no lugar de trabalho, no local de moradia, na sociedade. Outros se tornam fecundos entregando-se a Deus, em comunidade, através da consagração religiosa e da dedicação exclusiva à evangelização”38 .
6. BIBLIOGRAFIA
Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. Paulus, 2003.
BOFF, Clodovis. Mariologia social, Paulus, 2006.
BOFF, Leonardo. O Rosto Materno de Deus, Vozes, 1995.
GEBARA, Ivone, BINGEMER, Maria C.. Maria Mãe de Deus e Mãe dos Pobres, Vozes, 1987.
GONZÁLES, Carlos I.. Maria Evangelizada e Evangelizadora, Loyola, 1990
http://ciberduvidas.sapo.pt/diversidades/index.html
MEO, Salvatore, DE FIORES, Stefano. Dicionário de mariologia. Trad.: Álvaro A. Cunha et al. São Paulo, Paulus, 1995.
MURAD, Afonso. Maria, Toda de Deus e tão humana. São Paulo, Paulinas, 2004.
SCHNEIDER, Theodor (Org). Manual de Dogmática, Vol. II, 2ª. Ed. Petrópolis, Vozes, 2002.
1“Desde "Desde a pregação dos jesuítas, somos um povo que adquiriu muito do linguajar católico. Quando ocorre um infortúnio qualquer, é quase instintivo apelarmos para santos, anjos, o próprio Deus, etc. Uma das santas mais requisitadas é Maria, mãe do Homem, considerada virgem. Daí o apelo à "Virgem Maria!". Essa invocação é feita há séculos, mas foi se desconstruindo com as corruptelas naturais da língua, até chegar ao ponto em que chegou. Se um sujeito perde um ônibus e diz "xíííí", ou "ííííííí", na verdade está clamando por Virgem Maria. Acompanhe as sucessivas desconstruções que levaram à versão mínima da expressão da Santa: "Virgem Maria!" - "Virgem!" - "Virgi!" - "Vígi!" - "Víxi!" - "Íxi!" - "Xi!" - "Iíííí" - "Chhhh". Construções mistas também são usuais, como "Vixi Maria" ou "Íxi Maria"". In: http://ciberduvidas.sapo.pt/diversidades/index.html. Uma rápida pesquisa no sistema de busca da Internet sob o título "Vixi Maria" pode trazer dezenas de exemplos nesse sentido.
2Maria Evangelizada e Evangelizadora, Loyola, 1990, p. 239.
3A. MURAD. Maria, Toda de Deus e tão humana. São Paulo: Paulinas, 2004.
4C. I. GONZÁLES, op. cit., p. 242.
5I. GEBARA, M. C. BINGEMER, Maria Mãe de Deus e Mãe dos Pobres, Vozes, 1987, p. 121
6Nova edição, revista e ampliada, Nota c.
7"O texto não considera o período ulterior e por si não afirma a virgindade perpétua de Maria, mas o resto do Evangelho, bem como a tradição da Igreja, a supõem". Ibid., nota h.
8op. cit., p, 113.
9O Rosto Materno de Deus, Vozes, 1995, p. 148.
10Ibid., p. 148.
11op. cit., p. 121.
12Cf. C. BOFF, Mariologia social, Paulus, 2006, p. 476.
13Cf. C. I. GONZÁLES, op. cit., p. 243.
14A. MÜLLER e D. SATTLER, "Mariologia". In: T. SCHNEIDER (Org), Manual de Dogmática, Vol. II, Vozes, 2002, p. 164.
15Ibid., p. 164.
16Conforme formulação logo abaixo.
17Ibid., p. 155.
18Ibid., p. 155.
19C. I. GONZÁLES, op. cit., pp. 244.
20I. GEBARA, M. C. BINGEMER, op. cit., p. 122.
21A. MÜLLER e D. SATTLER, op. cit., p. 156.
22C. I. GONZÁLES, op. cit., pp. 246.
23A. MÜLLER e D. SATTLER, op. cit., p. 156.
24Cf. C. BOFF, op. cit., p. 475.
25L. BOFF, op. cit., p. 150.
26Ibid., p. 149.
27C. BOFF, op. cit., p. 491.
28L. BOFF, op. cit., p. 151.
29Citado em A. MÜLLER e D. SATTLER, op. cit., p. 165.
30L. BOFF, op. cit., p. 154.
31Ibid., p. 155.
32C. BOFF, op. cit., p. 481.
33Ibid., p. 481.
34Ibid., p. 483.
35Cf. Ibid., p. 484.
36Ibid., p. 485.
37Cf. C. I. GONZÁLES, op. cit., p. 242.
38op. cit., p. 116.
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