0 século doze da era cristã despontara sob esplêndidos auspícios. A fé e a opinião solidamente unidas, governavam juntas o Ocidente, e ali formavam de uma multidão de povos obedientes e livres uma só comunidade. No cimo da ordem social sentava-se o Pontífice universal num trono de onde a majestade baixava em auxilio da autoridade traída pela fraqueza da natureza, e a justiça em auxilio da obediência que se tornara intolerável pelos excessos do poder. A um tempo Vigário de Deus e da humanidade, apoiando o braço direito sobre Jesus Cristo e o esquerdo sobre a Europa, o Pontífice Romano conduzia as gerações para o caminho direito, tendo em si próprio, para compensar os abusos da sua plenitude, o recurso de uma infinda fraqueza pessoal.
Nunca a fé, a razão e a justiça se tinham abraçado sobre tão alto pedestal; nunca o restabelecimento da unidade, no intimo dilacerado do gênero humano, parecera mais provável e próximo.
Já o estandarte da Cristandade flutuava em Jerusalém sobre o túmulo do Salvador dos homens, convidando a Igreja Grega a uma gloriosa reconciliação com a Igreja Latina. 0 Islamismo vencido em Espanha e repelido das costas da Itália via-se atacado no centro do seu poderio e vinte povos caminhando juntos nas fronteiras da humanidade regenerada, para aí defenderem contra a brutalidade da ignorância e o orgulho da força o Evangelho de Jesus Cristo, prometiam à Europa o termo dessas migrações sangrentas, cujo foco era a Ásia. Quem podia dizer onde pararia a senda triunfante que a cavalaria cristã acabara de abrir no Oriente? Quem podia prever o que viria a ser o mundo sob o governo de um pontificado que soube criar no interior uma tão vasta unidade e um tão grande movimento no exterior?
Porém o século doze não acabou como havia começado e quando, chegado o ocaso, se debruçou sobre o horizonte para se perder na eternidade, pareceu também a Igreja inclinar-se com ele, vergando sob o peso de um temeroso futuro. A cruz de Jesus Cristo já não se ostentava nos minaretes de Jerusalém; os nossos cavaleiros, vencidos por Saladino, conservavam apenas na Síria alguns palmos de terra; a Igreja Grega, longe de se aproximar da Igreja Romana, ratificara ainda mais o seu cisma pela ingratidão e deslealdade dos seus para com os cruzados.
Estava perdido o Oriente. A história depois mostrou as consequências desse desastre: a queda de Constantinopla e a ocupação de uma parte do território europeu pelos turcos otomanos; uma dura escravidão imposta a milhões de cristãos sob o seu domínio, continuando as suas armas a ameaçar o resto da Cristandade até ao tempo de Luiz XIV; três séculos de invasões dos Tártaros no centro da Europa; a Rússia adotando o cisma grego e pronta a lançar-se sobre o Ocidente para destruir-lhe todas as suas leis e toda. a sua liberdade, a Europa agitada pelo enfraquecimento das raças muçulmanas, assim corno o fôra pelo seu engrandecimento, e a divisão da Ásia tão difícil como havia sido anteriormente a sua conquista. Montaigne disse que há derrotas que são um triunfo maior do que as próprias vitórias. Pode-se dizer que o mau resultado do plano de Gregório VII e de seus sucessores com respeito ao Oriente revelou melhor o seu talento do que o teria feito a mais triunfante realização dos seus desígnios.
Não era menos triste o espetáculo interno da Igreja. Todos os esforços de S. Bernardo para restabelecer a sã disciplina de pouco tinham servido contra a invasão da simonia, do fausto e da avareza no clero.
A origem de todos esses males, descritos com tanta eloqüência pelo próprio S. Bernardo, era a riqueza da Igreja, objeto da cobiça universal. Às violentas investiduras pelo báculo e anel, havia sucedido uma usurpação surda, uma simonia covarde e abjeta.
“Ó vã gloria!”,
exclama S. Pedro de Blois.
“Ó cega ambição,
ó sede insaciável das honras da. terra!
Ó desejo das dignidades,
verme roedor dos corações
e naufrágio das almas!.
De onde nos viria esse flagelo?
Como tomaria alento essa execrável vaidade
que incita indignos a procurarem dignidades,
tanto mais empenhados em conseguí-las
quanto menos as merecem.
Por todos os lados,
sem cuidarem do seu corpo
nem da sua alma,
estes desgraçados precipitam-se sobre a cadeira pastoral
que se converte para eles em cadeira pestilencial
e para todos em causa de perdição”.
Carta ao Cardeal Otaviano
Trinta anos mais cedo, dizia S. Bernardo com amarga ironia:
“São promovidos a dignidades eclesiásticas,
em virtude da excelência da sua linhagem,
estudantes ainda crianças,
adolescentes impúberes,
passando de estar sob o jugo da férula
a governar o clero,
mais satisfeitos muitas vezes
de se subtraírem aos castigos
do que da autoridade de que se acham revestidos,
mais lisonjeados do domínio de que se libertaram
do que do poder que adquiriram”.
Carta 42, a Henrique bispo de Sens
Eis a infelicidade da Igreja. Vêmo-la à custa do seu próprio sangue converter à fé de Jesus Cristo nações infiéis, suavizar-lhes os costumes, formar-lhes a inteligência, rotear as suas florestas, povoar de templos as suas cidades e descampados. Depois, quando vinte gerações de santos atraem sobre essas piedosas pousadas as bênçãos do céu e da terra, em lugar do rico compenetrado de Deus que ali vinha chorar os seus erros, em lugar do pobre satisfeito com Deus que caindo de joelhos ali fazia voto de ainda maior pobreza, em lugar de santos herdeiros de santos, vemos surgir o pobre que quer ser rico, o rico que se quer tornar poderoso, as almas medíocres que nem mesmo sabem o que desejam.
Em resumo, à força de intrigas, vem o báculo episcopal ou abacial a cair em mãos que nenhuma intenção pura santificara; o mundo rejubila por ver os seus favorecidos governar a Igreja de Deus e transformar o jugo suave de Jesus Cristo num governo secular. Restam nos claustros os latidos das matilhas de cães, o relinchar dos cavalos.
Quem podia então discernir as vocações verdadeiras das falsas? Quem possuía essa ciência? Quem mesmo tinha tempo ou se lembrava disso? Ninguém se ocupa já de saber como se geram as almas em Jesus Cristo, mas querem unicamente ser conhecedores do seu nascimento segundo a carne. A oração, a humildade, a penitência, a dedicação, fogem quais tímidos pássaros a quem estorvam no ninho; os túmulos dos santos são como estranhos nas suas próprias casas.
Eis o estado miserável a que uma sacrílega ambição reduzira grande número de Igrejas e mosteiros do Ocidente nos fins do século doze, e em muitos pontos onde o mal não era tão profundo era-o ainda bastante grande. A Santa Sé apesar de agitada pelos cismas que contra ela fomentara e sustentara o Imperador Frederico I, nunca deixou de proporcionar remédios a tão graves desordens; apresentou-lhes como objeções três concílios ecumênicos no espaço de cinqüenta e seis anos, sem contudo poder realizar senão muito imperfeitamente uma reforma, que tão dignos eram de obter os ilustres pontífices que nasceram quase sem interrupção das cinzas de Gregório VII.
Um dia, cerca do ano de 1160, um rico habitante de Lião chamado Pedro Valdo viu cair ao pé de si um dos seus concidadãos fulminado por um raio. Esse desastre fê- lo reflectir. Distribuiu os seus bens pelos pobres e consagrou-se inteiramente ao serviço de Deus. Como a reforma da Igreja preocupava então os ânimos, foi-lhe fácil, em virtude da sua própria dedicação, pensar que tinha sido chamado para essa missão e, reunindo um certo numero de homens, persuadiu-lhes que abraçassem com ele a vida apostólica.
É bem pequena, muitas vezes, a diferença que existe entre as idéias que produzem os grandes homens e as que não produzem senão agitadores públicos! Se Pedro Valdo tivesse possuído mais virtude e mais talento, teria sido São Domingos ou S. Francisco de Assis.
Mas sucumbiu a uma tentação que, em todos os tempos, tem sido a perdição de homens de elevada inteligência. Julgou impossível a salvação da Igreja pela própria Igreja. Declarou que a verdadeira, esposa de Jesus Cristo tinha sucumbido no tempo de Constantino, quando aceitou o veneno dos bens temporais; que a Igreja Romana era a grande prostituta descrita no Apocalipse, mãe e amante de todos os erros; que os prelados eram Escribas e os religiosos Fariseus; que o Pontífice Romano e todos os bispos eram homicidas; que o clero não devia possuir nem dízimos nem terras; que era um pecado dotar igrejas e conventos, e que todos os clérigos deviam ganhar a sua vida com o trabalho das suas mãos, seguindo o exemplo dos apóstolos; finalmente, que ele, Pedro Valdo, vinha restabelecer sobre as suas bases primitivas a verdadeira sociedade dos filhos de Deus.
Ponho de lado os erros secundários que deviam fatalmente nascer destes. Toda a força dos Valdenses consistia no seu ataque direto contra a Igreja e no contraste real ou aparente entre os seus hábitos e os hábitos desregrados do clero do seu tempo. Arnaldo de Brescia, morto, queimado em Roma, fora o seu precursor. Era um homem cuja figura pessoal se salienta muito mais na historia do que a de Pedro Valdo; mas Pedro Valdo teve a vantagern de vir depois dele, quando já o escândalo tinha amadurecido, e teve portanto um sucesso assustador. Foi ele o verdadeiro patriarca das heresias ocidentais e quem lhes imprimiu uma das grandes características que as distingüem das heresias gregas, isto é, uma feição mais prática do que metafísica.
Ao abrigo das mesmas circunstâncias que protegiam os Valdenses introduziu-se na Alemanha e Itália uma heresia a de origem oriental, que iria estabelecer o seu acampamento principal no sul da França. Esta heresia, sempre guerreada e sempre cheia de vida, datava dos fins do terceiro século. Formara-se nas fronteiras da Pérsia e do Império Romano de uma mistura de idéias cristãs com a velha doutrina persa, a qual atribuía o mistério deste mundo à luta de dois princípios coeternos, um bom, o outro mau. Estas espécies de alianças entre religiões e filosofias diversas eram nesse tempo muito vulgares: vinham da tendência que têm os espíritos fracos de querer juntar o que é incompatível. Foi um Persa chamado Manés quem deu a sua derradeira forma à monstruosa combinação a que nos referimos.
Menos feliz do que os outros heresiarcas, a sua seita nunca pôde atingir ao estado de sociedade pública, isto é, possuir templos, um sacerdócio e um povo reconhecidos. As leis dos imperadores auxiliadas pela opinião perseguiram-na sempre com uma perseverança infatigável; isto foi o que lhe prolongou a vida. 0 estado de sociedade pública é uma situação que o erro consegue sustentar apenas por pouco tempo e a duração desse tempo é tanto mais curta quanto mais contraditórias são as bases sobre que assenta o erro e quanto mais imorais são as suas conseqüências. Os Maniqueus, repelidos da luz do sol, refugiaram-se nas trevas; formaram uma sociedade secreta, única condição que consente a prolongação do erro por mais tempo.
A vantagem dessas associações misteriosas consiste menos na facilidade de fugir às leis do que na facilidade de fugir à razão pública. Nada há que possa impedir certos homens, liga dos pelos dogmas mais perversos e pelas mais ridículas prá ticas, de recrutarem na sombra espíritos aventureiros e, pela magia das iniciações, de os persuadirem por meio de uma doutrina sem fiscalização, de os agarrarem pela idéia de um grande e remoto resultado, cujo culto profundo, crêem eles, se tem transmitido por cem gerações e, finalmente, de os prenderem, pelo lado vil do coração humano, consagrando suas paixões sobre uns altares desconhecidos do resto da humanidade. Há hoje no mundo associações secretas que talvez não contem mais de três iniciados, e que ascendem por uma invisível sucessão até ao antro de Trofônio ou até aos subterrâneos dos templos do Egito. Esses homens, cheios de orgulho de possuírem um tão raro depósito, atravessam imperturbáveis os séculos, com um profundo desprezo por tudo quanto neles se pratica, julgando tudo pela doutrina privilegiada que lhes tocou por sorte e unicamente preocupados do desejo de reproduzir uma alma que, por sua morte, venha a ser a herdeira da sua felicidade oculta. Estes são os Judeus do erro. Assim viveram os Maniqueus, aparecendo, de vez em quando na história, como esses monstros que no fundo do Oceano seguem ignotas veredas, e que ás vezes mostram suas cabeças seculares acima das vagas. Há a notar porem isto de maravilhoso na sua aparição no século doze, que eles pela primeira vez chegaram a um começo de sociedade publica. Espetáculo realmente inacreditável!
Esses sectários que o Baixo Império conservara constantemente debaixo de seus pés estabeleciam-se agora abertamente em França, à vista desses pontífices que tinham poder suficiente para constranger o próprio imperador a respeitar a lei divina, e a vontade das nações cristãs. Nenhum fato manifesta mais claramente a surda reacção que então fermentava na Europa. Raimundo VII conde de Toulose estava à frente dos Maniqueus de França, vulgarmente denominados os AIbigenses. Era o sobrinho neto desse afamado Raimundo conde de St. Gilles, cujo nome se confunde com os melhores nomes da primeira cruzada, com os nomes dos Godofredo, dos Bouillon, dos Balduinos, dos Robertos, dos Hugos, dos Boemond. Abdicara da herança de glória e virtude que lhe haviam transmitido os seus antepassados, para se tornar o chefe da mais detestável heresia a que o Oriente dera vida, subjugado não somente pelos mistérios próprios dos Maniqueus, como pela máscara valdense que haviam adoptado para melhor entrar nas idéias do Ocidente.
Ainda isto não era tudo. 0 ensino nas escolas católicas, reconstituído depois de um. longo interregno, desenvolvia-se sob a influência da filosofia de Aristóteles e toda a tendência desse movimento era a de fazer prevalecer a razão sobre a fé na exposição dos dogmas cristãos. Abelardo, homem mais célebre por suas culpas do que por seus erros, foi urna das vitimas desse espirito aplicado à teologia. S. Bernardo acusou-o de transformar a fé, baseada sobre a palavra de Deus, numa simples opinião assente sobre princípios e conclusões de ordem humana. Mas embora tivesse conseguido uma vitoria fácil, enobrecida pela submissão sincera do seu adversário e por um raro exemplo de reconciliação, o mal seguira o seu curso.
É sempre difícil resistir a certos impulsos cuja força vem de longe e do alto. A era grega ficara na memória dos povos cultos, como o ponto mais culminante a que chegara o talento do homem. 0 Cristianismo não tivera vagar de produzir um a literatura comparável a essa, nem de constituir uma filosofia e ciência próprias.
Existia, por certo, o seu gérmen nos escritos dos Doutores da Igreja; mas muito mais cômodo era aceitar um corpo filosófico e científico já completamente organizado. Tornou-se portanto Aristóteles o representante da sabedoria. Infelizmente Aristóteles nem sempre estava de acordo com o Evangelho: daí resultaram três partidos. Um partido sacrificava o filósofo a Jesus Cristo segundo esta palavra:
“Não tendes mais que um Senhor, que é o Cristo”. Mt. 23, 10
0 outro sacrificava Jesus Cristo ao filósofo, fundando-se em que, sendo a razão a luz primária do homem, em tudo deve conservar a primazia. 0 terceiro admitia que houvesse duas ordens de verdade, a ordem da razão e a ordem da fé, e que o princípio que era verdadeiro numa, podia ser falso na outra.
Em resumo, o cisma e a heresia favorecidas pelo mau estado da disciplina ecIesiástica e pelo ressurgimento das ciências pagãs demolia a obra do Cristo no Ocidente, enquanto que o infeliz êxito das cruzadas consumava a sua ruína no Oriente e abria aos bárbaros as portas da Cristandade. Os papas, é certo, resistiam com uma virtude imensa aos perigos crescentes dessa situação. Subjugavam o Imperador Frederico I, animavam os povos a tomar parte em novas cruzadas, reuniam concílios contra o erro e a corrupção, velavam pela pureza da doutrina nas escolas, estreitavam em suas poderosas mãos a aliança da fé e da opinião européia, e do sangue agitado desse velho tronco pontifical surgia Inocêncio
III. Porém a ninguém é dado sustentar só por si o peso das coisas divinas e humanas; os maiores homens necessitam do concurso de mil forças, e as que a Providência concedera ao passado pareciam vergar sob o peso do futuro. A obra de Clóvis, de S. Bento, de Carlos Magno, de Gregório VII ainda de pé, vivendo dos vestígios do seu gênio, clamava em seu auxílio uma nova efusão do Espirito em quem unicamente reside a imortalidade. Nestes momentos supremos é que se deve prestar um ouvido atento aos conselhos de Deus. Trezentos anos mais tarde ve-lo-emos abandonar ao erro metade da Europa, para desse erro tirar um dia um triunfo cujo segredo começamos a entrever; mas naquela época aprouve-lhe socorrer a sua Igreja pelo meio directo da misericórdia. Jesus Cristo contemplou os seus pés e as suas mãos trespassadas por nosso amor e desse olhar compassivo nasceram dois homens: S. Domingos e S. Francisco de Assis.
A história desses dois homens, tão semelhantes e tão diversos, nunca se deve separar; porém o que Deus criou de uma só vez não pode ser descrito por uma só pena. Muito faremos nós se pudermos dar uma idéia do santo patriarca Domingos àqueles que nunca examinaram atentamente os seus actos.
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